sábado, 7 de março de 2009

VIDA SEVERA

Quando arreganhei teu ventre como uma anaconda indolente
Atravessei o umbral do narcisismo e deparei-me com a tua mãe
Estava acocorada no salão uterino, lambendo o teu endométrio
Dos dois lados havia espelhos austríacos de festa setecentista
De modo que os convivas multiplicavam-se à exaustão, bailando
Despercebi-me dos pares triviais, dos parentescos e dos noivos
Localizei tua mãe chorando com a boca no saco da fecundidade
Desposei a jovem senhora que te deu à luz e fiz amor com ela
Na hora em que o seu rapto ia rasgando os rastos alumbrei-me
Tua mãe vomitava restos de ti, filha, empapando couros e pelos
Seria preferível nada fazer ali do que fazer as coisas pela metade
Enterrar o rosto nos escombros para que fantasmas venham cavar
Há em nossas almas certos recantos tão profundos que só o amor...
Que só o amor ousa penetrar e de lá trazer as jóias inimaginadas
De que serve a um homem afligir-se por causa de seus erros e perdas?
Há em nossas almas furnas para o canto às mulheres sovadas
Hino que exorta os sucos das vísceras que fazem a dor se consumar.

Beijei tua mãe, sim, degluti suas peçonhas encravadase seus tumores
Tive varados o esôfago, o estômago e o peritônio, ávidos por purulência
E encerrei as minhas ambições nos espaços gastosda vida material
Da vida severa piorada pelos prognósticos da dupla predestinação
Não é fácil privar duma satisfação o homem de grandes sentimentos
Que aprendeu a transformar todas as coisas em motivo de espanto
Mas que belo destino esse que num átimo dissolve-sena sebe turva?
Quando partia furando os blocos da máquina de desejos ferventes
Ele sabia, sim, que poderia nunca mais voltar em pessoa - o espírito nem partia
Mas quem entende a ambigüidade humana senão aquele que se mói?
Não querendo colecionar suas nesgas, ensoberbecido na visão do moinho...
Mesmo supondo que tudo permaneça na sombra terá falhado a mulher?

Por que nenhum raio transpôs a soleira de sua morada - tão exígua e morna
Como um útero de serviço por onde entram os lúmpens da vassalagem?
Lembra uma menina correndo ao lado de sua mãe, puxando a chita
E pedindo para ser carregada no colo, e recebendo zanga de resposta?
Vá, Pátroclo, e afaste o incêndio dos navios e pare de combater em vão
A vida é uma guerra de tróia que não acaba e a mulher é como Aquiles
Quando pega a taça que sua mãe lhe dera e só ele poderia nela beber
As naus entram no mar em chamas e de uma nuvem as lanças chovem
Enquanto isso, há mil desejos despejados em urnas rachadas e vazias
E o caldo quente vazando para os esgotos gelados da indiferença.

Sumi nas minhas trevas, sim, afastando-me das carnes se derretendo imoladas
E não olhei pra trás, sim, ocupado com as pontas metálicas que zuniam
Em meio ao alvoroço da encenação de uma enseada ensangüentada
Tropecei na mãe que arranquei com os dentes da gruta da infanta
E não a podendo levar pisei em seus dedos abertos soltando remorsos
E que agora seguram um dos meus sapatos de ouro sujos de bosta.

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