quinta-feira, 5 de março de 2009

ESTOU CONSCIENTE DE QUE DEVO LUTAR

Estou consciente de que devo lutar
Mas ainda choro
pela direita
pelos estragos da direita
pelo menino rasgado
pela menina baleada
pelos meninos nus e descalços
pelas meninas nuas
com as peles dependuradas.

Estou consciente de que devo lutar
Mas ainda choro
pelos gritos na porta das emergências fechadas
das estações fechadas
das fábricas fechadas
das escolas fechadas
dos campos fechados
dos corações fechados
gente gritando de dor
analfabetos gritando
gente à procura de saber
gente à procura de saber
por onde andam os seus
gente à procura de saber
pra onde foram os humanos
gente à procura de saber
pra que diabos serve a existência.

Estou consciente de que devo lutar
Mas ainda choro
pelos animais de olhos furados
pelo cachorro apanhando
pelos ursos em gaiolas
pelos pássaros duros de óleo
Ainda choro
pelo trabalho escravo
pela humilhação do humilde
pelas mãos em coro nos corredores da morte
pela família soropositiva.

Estou consciente de que devo lutar
Mas ainda choro
pelos seres humanos fugindo de seres humanos
de vergonha por não ser médico
e não estar nos acampamentos
por não ser guerrilheiro
e não estar enfrentando um tanque
de medo de perder minha filha
enquanto tantos, quantos pais
estão órfãos de todos os filhos.

Estou consciente de que devo lutar
Mas ainda choro
pelas bombas nos ônibus escolares
pelos pretos mutilados
pelos pretos cuspidos
pelas diferenças igualadas
pelos jovens de direita
preocupados com seus carros
pelos imigrantes indo de encontro aos algozes
crentes, inda que contra a sua fé
cheios, inda que leigos, de esperança
enlatados em comboios, entalados de receio
em busca de apoio para seus vãos anseios obscuros
vãos de ideais, vãos de futuro
desencontros num abismo de utopias.

Estou consciente de que devo lutar
Mas ainda choro
pelas muletas nas filas
moleiras ao sol
pelas mães solteiras
sem dividir o destinos
em destino pra dividir
pelas moléstias do abandono
na beira das ruas, sob a luz de um farol
pelas infâncias marcadas
rameiras por um prato de comida
comidas com fúria num lençol de boléia
pelas mulatas comercializadas
herdeiras precoces
largando seus abortos escusos
e seus gozos infinitos no chorume
das chepas das feiras de abusos
depois corridas a coices
com vastas gonorréias
devassadas e imundas de diarréias.

Estou consciente de que devo lutar
Mas ainda choro
pelas latas com farinha e água
e pelos olhos perdidos em volta
pelos calangos nas banguelas
pelas crias sem leite
sem aniversário
famintas vendendo balas
sofrimentos que nem estão no dicionário
os mendigos fora do tempo
fora de suas próprias carnes
fora de tudo e de todos
beijados pela lama
abraçados pelo calor frio de uma chama fugidia
que consome o papelão
o papelão de uma sociedade culta e religiosa.

Estou consciente de que devo lutar
Mas ainda choro
pelo ódio corrosivo da sociedade culta e religiosa
que joga uma mãe no fogo da indiferença
pelo ódio corrosivo de uma mãe
que joga água fervendo na criança
pelo ódio corrosivo da criança
que joga balas fumegantes
na sociedade culta e religiosa
pelo ódio corrosivo da sociedade culta e religiosa
que joga crianças no reformatório
e mães em penitenciárias.

Estou consciente de que devo lutar
Mas choro pela cultura amorfa dos capitalistas
pelo cantador que vomita no cordel
de tanta fome e de tanta cachaça
pelo caldo de inconveniências e imposturas
que faz o nativo regurgitar a alma
pra dar um último sentido à sua vida.

Estou consciente de que devo lutar
Mas choro pelas focas-bebês ensangüentadas
pelos bebês nas ocas
perto dos vírus das cidades longínquas
pelos tocos das árvores
pela rês no oco do mundo
abatida a pauladas
escarnada viva pelos leões domados e abandonados.

Estou consciente de que devo lutar
Mas choro pela vida que se esvai esquecida
pelo tempo que se perde no vento
pelas mulheres espancadas
por homens que aprendem na televisão a bater
e não sabem quem são.

Estou consciente de que devo lutar
Mas ainda choro
pela invalidez do dinheiro
pela estupidez dos boçais
que disputam e concorrem e competem
e não sabem lutar
e riem de um viado
e riem de um poeta
e riem de uma puta
e riem de um velho
e riem de um aleijado
e riem de uma pessoa desesperada
e riem de quem enlouqueceu
por causa disso tudo.

Choro porque vejo tantos irmãos conscientes
que ainda choram por si mesmos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário