terça-feira, 10 de março de 2009

A DOCE VISÃO DA LUZ DO INFERNO
(Sete estrofes de sete versos em 7/07)

Eu vejo uma virgem coberta de feridas
Que a aquecem do frio no breu da manhã
E, pelos olhos dos tubarões, sua imagem
De ferro cru, na tempestade devora e apavora.
Não sei se devo prateá-la ou enferrujá-la,
Me arvorar a defendê-la dos autocoices
Ou encher sua vulva de bolas de mármore.

Eu vejo uma sílfide sem meias-medidas
Que imita o abandono cuspindo porra,
Vomita pra dentro a palavra dos outros,
Regurgita falos batidos no liquidificador,
E pisoteia úlceras que extirpa a dentadas
E hasteia bandeiras rubras escrito “Fuja!”
Depois entrega a faca cega que amolou
Para que raspem a crosta funda que ama.

Eu vejo um estacionamento de corações
E um decote retrátil ao comando remoto
Onde estouram cachoeiras de lama podre
Que soterram as rochas de leite vencido.
Eu vejo o cabo das catástrofes no coldre
E uma doce matricida abortando o caos
Que brota irrefreável ao mínimo tropeço.

Eu vejo o mesmo fim que nunca se repete
E os princípios coalhados numa cuia velha,
Uma órfã sem dedos apoiando um mastro,
Estandarte roto e sujo onde não se lê “Paz”.
Uma horda de retirantes nus, exoftálmicos,
Que pára frente ao abismo e atira acordéões,
Desce para buscá-los e nunca mais retorna.

Eu vejo agora que anoitece reabertas chagas,
Ouço cânticos roucos que sangram o sereno
E o colo da sílfide se dobrando sobre o seio
E o peito desarmando sobre o colo das coxas.
O gás carbônico fugindo pelos joelhos unidos
E os calcanhares disparando e batendo a terra
Ensebados da placenta ácida dos desumanos.

Que gosto tem a boca sonâmbula pelas escadas?
Escorre da memória entrevada essência de maçã
E quando as faces descoram e os lábios somem,
Um toldo de lona, da lona dos nocautes sem dor,
Avançam como um cúmulo-nimbo gigantesco
Logo acima das pálpebras encouraçadas da bela
E as palavras desembarcam na indolente surdez

E seus gumes cinzelam num monolito, feito do lixo
Dos lares felizes, um ícone inútil de amor ao ódio
Ao ódio arrependido de quem ficou para trás e só
E, para passar o tempo com o ferro cru da imagem,
Arranca tiras de tecido necrosado e enrola-os bem
Para torná-los cordas que, presas nos pecegueiros,
Vibram melodiosamente enquanto as copas bailam.

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