sábado, 7 de março de 2009

AS ONGS E O CONTRAPODER
por Bruno Cattoni

"Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal."

À sombra das tragédias humanas de nossos dias, a frase do artigo três da declaração universal dos direitos humanos transforma todos nós, militantes brasileiros de esquerda, em personagens quixotescos. Nossas utopias estremecem ao lermos também os outros artigos da mesma declaração. As recomendações da ONU vão ficando distantes. Os sonhos de uma nação justa e soberana parecendo bolhas de sabão.

Há escravos no Brasil do século XXI. Crianças que sofrem todo tipo de violência. Assassinatos em massa nas cidades e no campo. Um outro grande país dentro do nosso, só de terras improdutivas e, paradoxalmente, milhões de famílias agricultoras vagando pelas estradas. A geração de divisas dissipa as fronteiras nacionais e divide o país em dois, acirrando a tensão entre as duas bandas – a que tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal e a que não tem.

O relatório anual dos direitos humanos reproduz o retrato dramático desse Brasil desumano, ampliando a visão de quem está acostumado a saber das violações apenas pelas manchetes dos jornais diários. Há, no relatório, fundamentalmente, um apelo em nome da civilização, contra a barbárie. Um apelo baseado em números humanos, que opõem-se à econometria, à lógica do mercado, e à coisificação do mundo. Enquanto os organismos que representam os interesses econômicos exaltam a responsabilidade social das empresas, a marcha do capital vai sobrepondo-se à marcha do homem.

O agronegócio, por exemplo, com suas máquinas de ponta, produz progressivamente riqueza e incessantemente pobreza, aprofundando a crise social no campo. O agronegócio é como o trabalho escravo, a violência policial e a violência institucional nos hospitais, escolas, delegacias e tribunais – existem para proteger e perpetuar as elites.

A crescente agenda de temas do desenvolvimento defronta com a lentidão da justiça, os trâmites legislativos e as ações administrativas dos governos. A maneira de declarar a violência como um ato de segregação social não muda, apesar de já termos uma consciência nacional que não tolera mais o recurso da força bruta ou da intolerância. Há tortura e deliberado esquecimento das masmorras, apesar do combate retórico. Há impunidade, apesar de ações perfunctórias de recolhimento e detenção. Há ódio às mulheres, aos velhos, aos negros, às crianças, aos sem-teto e aos sem-terra, apesar de leis, estatutos e comissões parlamentares.

Sejamos otimistas. Podemos pensar que o direito vai evoluir na esteira desses movimentos cada vez maiores pela legalidade, pela legitimidade dos atos da sociedade. Haverá outra concepção que não o simples atrito entre o que pode e o que não pode nas mesas de negociação política e comercial.

É preciso ver que empreendemos um longo percurso de transformações no qual há um lugar para os múltiplos organismos de regulação da sociedade. As ONGs, as novas instituições que surgiram nas ruas da nação, e a opinião pública mobilizada nas discussões e na tomada de decisões, expõem a crise das democracias parlamentares como instâncias representativas da sociedade civil.

Para fazer com que a democracia parlamentar reforce sua legitimidade política e social talvez seja preciso institucionalizar a incorporação das ONGs e das associações comunitárias, que são expressões vigorosas da vida cívica. Trabalhar para a efetivação do debate público apenas não está impedindo as constantes violações dos diretos humanos.

Talvez fosse necessário o reajustamento das políticas nacionais à perspectiva de longo prazo, na medida em vivemos sob o signo do curto prazo, num perigoso antagonismo em relação às ameaças que se formam no futuro. O resultado é a exclusão social. Brasileiros cujos pulmões não são considerados dignos de uma moradia com saneamento básico, cujos olhos não tem a nitidez para distinguir o contorno das artes e em cujas cabeças não funcionam os mecanismos que promovem o encontro do homem com a compreensão do mundo. Brasileiros sem rosto, sem mente e sem alma, posto que sem direito a ser, a ter e a saber. Arrancam dele a vida às vezes sem matá-lo. Na maioria das vezes fazendo-o, e escondendo as razões.

Na luta pela inclusão dos movimentos sociais em todas as instâncias legais, parlamentares e administrativas, faz-se necessário um novo modelo de participação criativa propriamente humana de cada membro da sociedade, cujo funcionamento deixará de ser-lhe exterior e opaco.

Aproxima-se o momento em que, cada qual em sua área de atuação, as ONGs deverão assumir o papel de formar conselhos comunitários, levando em conta, tanto quanto possível, as demandas e os simbolismos do segmento social que representam. Neste sistema, cada sujeito intervirá na definição do próprio sistema através de seus interesses, seleções e finalidades. Realizará tarefas em condições tais que tendam á realização do homem e não à sua alienação. Os conselhos de participações deverão portar-se como um contrapoder, utilizando a expressão que o terceiro setor já desfruta e o espaço que já ocupa. Na etapa seguinte, um gestor comunitário negociará cada proposta junto aos poderes constituídos, propondo a adoção de métodos para o desenvolvimento sustentável do país, respeitando o equilíbrio entre a economia, o meio ambiente, e a qualidade de vida.

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