sábado, 7 de março de 2009

O ROSTO, A ÉTICA, E O NOSSO DESTINO TRÁGICO
por Bruno Cattoni (com Lévinas)

Todo o pensamento ocidental está baseado no racionalismo, fonte e finalidade do eu, mesmo que se refira, neste pensar, ao outro. Mas o outro está sempre referido, nunca é o centro da estrutura do pensamento. O centro está sempre no homem, até nos mais auspiciosos humanismos. E o homem é o centro do mundo, o eu do mundo. O outro não é o homem. O outro é o Rosto que me apela. É a exterioridade do ser, para fora de toda a topologia do ser. O outro é o Infinito, e não a Totalidade fechada sobre o absoluto. O outro está aberto para que eu penetre e o substitua, o salve da violência, e o salve até mesmo da violência do meu pensamento auto-referente. O outro é ética, não ontologia, fonte e finalidade do solipsismo masturbatório.

O racionalismo pensa o pensamento, e exclui o pensar como se sonha. Uma arrogância ingênua sem limites. O sujeito não pode ir ao absoluto, porque ele é a transcendência de si antes de tentar situar-se. A sua presença já é a sua ausência. Todo pensar é poético, é chave de transformação, puro fazer sem começo, e passo-além. O Outro é o acesso para chegar a Deus, abrir-se ao Outro é abrir-se a Deus, não ao Deus absolutista, rei dos reinos, mas o Deus que me vem à idéia antes de enrascar-me na angústia de existir, que me vem à idéia ao estender a mão ao Outro que me apela, sem palavras e sem aparências, em sua presença questionadora em si mesma.

A psicanálise quer abolir de culpas o racionalismo, dar um começo e uma essência a ele, localizar o pensador num contexto de civilização e de mitos que petrificam o homem e o ser. As palavras são produtos desta mentira. A linguagem, antes de possibilitar o diálogo e a abertura ao outro, ela condiciona este diálogo e a própria presença do outro num estatuto. A linguagem produz o conceito e é produzida pelo conceito que temos de um interlocutor genérico. Ao falar com o outro, já não é com o outro que falamos. A ética não é um conjunto de valores humanos que utilizo para fazer o Bem. Ética é a essência do movimento que faço em direção ao outro que me apela, que me obriga a mexer-me.

Como posso ser livre para pensar se meu pensamento está sempre preso a mim mesmo? Como posso ser livre, tendo a liberdade como causa em si, se a morte alcança o meu interlocutor sem que eu nada possa fazer senão pensar e falar com ele? Como desligar-me de mim e partir anônimo e responsável, ao mesmo tempo, em direção ao outro que está ameaçado de morte? Como posso salvar o outro que, em seu aparecer, anuncia a minha própria miséria, meu próprio desvalor, minha própria insuficiência? Como parto sem nada para me por no lugar daquele que está em sofrimento?

É o Outro que me convoca, a mim passivo, à fé ou ao Infinito. Muitas vezes seguimos os ensinamentos sem nos despertar, só porque um profeta assim ordenou no plano da consciência. Há, de outro modo, um declanchar prévio, um traumatismo, uma ruptura nesta consciência de si que pensa Deus. É o que Descartes chamou de "a idéia que vem a nós". Quem pôs? A consciência de si? A evidência do saber (repleta de apelos), que é uma modalidade de repouso do ser em que sua identidade de ser se identifica e se confirma? Ou quem põe esta idéia em nós, para a transcendência do Infinito, é o Outro, em sua altura e em sua diferença, e que nos chama à responsabilidade sem apelo algum compreensível?

Como lutar desde a manhã, se não sentimos o Rosto do homem perante nós, mas só o nosso próprio lugar pleno de autodeterminação, a nossa idéia de Deus como proposta para nós mesmos, de seguir uma conduta limpa. Mas para quê? Para a salvação da minha alma, certamente. Não, não é suficiente para salvar o homem do seu destino trágico.

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