terça-feira, 10 de março de 2009

A FILHA LIBERDADE

I

Uma casa frente à outra
E, no meio, grades e um pau-ferro.
Naquele espaço nasce uma filha
Provida de dois velhos corações.
Por aquele leito descem os rios
Corredeiras rumorosas apressadas.
Mas as margens estão tranqüilas
Ou estavam antes da fecundação.
Uma casa frente à outra
No meio, muros e invisibilidades.
Famílias que são paisagens mútuas,
Vivências e histórias independentes
Que se importam de se expor nuas
E trocam privacidades impessoais.
Uma casa frente à outra
E no meio tudo se faz por acaso,
Embora os destinos se construam
Com o planejamento necessário.

II

A comunidade se ignora, fortuita.
Os vizinhos fingem não se olhar
Ou fingiam antes da fecundação.
Uma casa frente à outra,
No meio a estrada em barris,
Gotejando e seduzindo as sedes.
Um dia a estrada brota dos rios
E já não há mais como bebê-la.
Ela começa a descer por dentro
Para matar a fome de caminhos.
Duas casas, frente a frente
E no meio uma batalha campal
De destinos indisfarçáveis à vista.
A impetuosidade da correnteza
Derruba grade, muro e distância.
Uma casa mergulha na outra
E a filha de dois velhos corações
Começa a cantar bem mais alto
Do que as algaravias das gentes.

III

O encontro do outro é ameaça
Às liberdades mal escolhidas,
Às liberdades impostas na luta
Que se descobriram tão finitas,
Na funda essência tão trágicas,
Quando o encontro suprimiu-os
Um ao outro como as duas casas,
Pela visão, antes das captações
E antes da tomada das bastilhas.
Que será desta Liberdade ninada
De uma lasciva incandescência?
A funcionar a transcendência,
Faríamos melhor nos entregando
À força do outro que se afirma.
Ver que o amor está bem acima
Da apropriação de suas verdades.

IV

Nesta palavra está nossa medida.
Em seu eco a sua transformação.
O ideal não é nossa liberdade mas
O quanto a de todos há na minha.
Só fundar necessidade de ser livre
Ao surgir no outro sua contestação
Que deve convocá-la a exceder-se
Até não mais distante estiver da ação.

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