domingo, 8 de março de 2009


DALLAS MOTEL

Um motel roxo, com hortênsias na entrada
E um portão onde se lê hora escedente.
Ninguém espera, não há casais se amando
É um lugar onde a solidão vai se encontrar
Com o silêncio, e viver um gozo interdito,
Juntos, na maior algazarra sem finalidades.
Várias baias e toldos suspensos convidam
Cavalos invisíveis a voltar para o descanso.
Longe das turbulências e das adversidades,
O motel fica num vestígio de acostamento,
No meio de uma curva perigosa e, por isso,
Para lá só vão noivos que não se conhecem,
Nunca foram amantes, nem sabem de amor.
Entram, o portão se fecha atrás e se perdem
No meio de uma arena de touros desocupada
Onde a beira da estrada se retira para dormir
Mas não dorme pois não há quem a acalante
Ou a acalme de tantos destinos inconstantes.
Um motel roxo, da mesma cor daquela blusa
Que enfeitava a última donzela vista seminua.
Com hortênsias na entrada, com jeito de falsas,
E um portão que sempre se abriu por encanto
Onde ninguém lia hora escedente não paga.


Toras de lenha encravadas na parede ascendem,
Levam ao vestíbulo, ao patíbulo cru e asseado.
Dois pares de chinelos sujos e velhos destoam.
A luz empastelada pelo basculante enruga o ar
Enquanto as grutas esfoliadas gritam e minam.
Uma televisão faz enfeite e nenhum crucifixo.
Ali o ser não está mais nem talvez nunca esteve,
Cedeu espaço para os indícios do rastro de Deus.
A questão não é de que jeito é possível ser feliz
Mas como, ali mesmo, deixar que tudo aconteça.
Inicia-se já a cerimônia do desnudar das utopias
E caem do nada rubras e serenas gotas de sangue.
O Dallas Motel cumpria a sua função: epifania
Da vida que volta de um grande passeio etéreo.
Desespero! Não há conforto para o Irremissível.
Como tamponar os rios que já deixaram a fonte?
Uma voz roxa brota como um "eis-me aqui" rude:
As ordi! Sem algodões ou espuma de travesseiros,
Jorram os plasmas de todas as incuráveis feridas.
O patíbulo incha e se transforma num mole edema.
A voz retorna ao desconhecido pois ninguém havia
E o pensamento do pensamento é que não há saída.

Dallas Motel, um motel roxo, no meio do não-fim.
Não sopra o vento, a poeira sossegada lembra a Lua
Embora o sol ferva numa tarde de espera desinfinita.
Como fomos parar ali? Procurávamos apenas o amor
E encontramos veias abertas de um mundo saturado.
As palavras se foram sem se esvair e a nova desdita
É que os ditos não servem à Obra de indicar o Outro.
Esvaem-se as entranhas pançudas de vãs fatuidades.
Tudo sangra. A sanfona que divide o cômodo e a luz,
O espelho silencioso e que esqueceu a sua discrição
Para refletir nossas impossibilidades em vez dos ardis,
Além do nariz, ainda inundado pelos perfumes tardios.
Uma pedra voadora tem-nos a comandar seu destino.
Todos os mostradores estão parados e um violoncelo
Range na vinda de espíritos da roça, em rota de cura.
Não havia hora de ouvir, e as pálpebras vão cerrando
Como borboletas aflitas que extraviam a naturalidade.
Não havia hora de ter (a posse crispa-se sem viva'lma).
Não havia hora de ver, só para os anjos que entornam.
Não havia hora de sofrer, pois o mundo parou lá fora.
A pedra voadora, que cortava os céus sem maravilhas,
Quartzifica-se, turmaliniza-se, topazia-se, gema vária.

Fatura e chamado. Uma portinhola curva de madeira
Abre-se como o portão para que se veja um papelote,
Nele o garrancho de rabisco com o preço da estadia.
Um circunspecto, monástico e eclesial papel de pão
Indicava o custo da escatológica visita ao motel roxo.
Ao lado, uma terrina barata com sete pedras de gel,
Granizo encomendado aos aluviões da Mantiqueira.
Vinte reais tão paliativos quanto a compressa gelada
Não estancavam o fluxo escorchante da fome impura
Que acometeu a Humanidade bem antes dos motéis.
Sim, esta gana de interstícios e satisfações abstratas
Conduz à hemorragia que descasca corpos por dentro
A torná-los exangues e secas casamatas de desencanto.
Ecoam as espessuras secretas dos femininos ir-e-vires
Incorporam-se do turvo mistério das presenças felinas.
A separação que se delineia na intimidade da morada
Funda novas relações com os elementos e as vitórias.
A verdade conta frescas histórias sem a ruína do luto
Porque os bisturis já escamaram as almas encrespadas
E logo-logo bafejaram os elíseos das coxias cabangus
Entontecendo os ardores, purgando a dor das sombras.
E a carroça carregada de tonéis de sangue abarrancou
Pelas franjas da leiteria, suas rodas guinchando afetos.

É isto que fizeram os ectoplasmas: cirurgia espiritual.
Sete meses e doze dias de frustrações irreconciliáveis
Inverteram-se na plaqueta da porta do segundo hotel:
Duzentos e dezessete, na mágica pressa dos pacientes.
Podia ser qualquer espera encarnada e sanguinolenta
E toda faceta numérica das volutas mais submarinas...
Contudo, resplandeciam na estrada eras imponderáveis
Que selavam sacramentos além das mortes e das vidas.
Postas coaguladas aos borbotões saltavam em vômitos
E foram lacrando as coisas como assinaturas imperiais.
Seja qual for a razão pela qual se morre, sangrar assim
É preciso, para avizinhar-se da vida, alma inda isolada,
Para justificar o encontro a nu, substancialmente ético.
Não esquecerei o dia em que o acidente vascular nasal
Levou-me ao motel roxo, com hortênsias na entrada
E um portão onde se lê hora escedente súbito se abriu,
Um porteiro chamado Elvis sem vir colocou-se as ordi,
Um estrangeiro que me entregou seu si, sem condição,
Um copo de gelo sem algodão e tudo por vinte reais.
Naquela arena de touros deserta eu fabriquei o tempo
Que, em hebraico, equivale a convidar. O futuro dado
Como sendo o que nos vem do outro, sem obsessões.
Fui à janela do corredor e vi um pavão abrir a cauda.

Santos Dumont (MG), 8-10-2007

2 comentários:

  1. Gostei do texto! Já fiz trabalho acadêmico sobre o MH Dallas e conheço o dono! Legal!

    ResponderExcluir
  2. O escritor poderia me passar o número !?

    ResponderExcluir