sábado, 7 de março de 2009

POESIA E DIREITOS HUMANOS
(MANIFESTO)
por Bruno Cattoni

A não ser por piada, ninguém pode dizer que existe um poema ou um poeta que cante e exalte as desigualdades, os preconceitos, as injustiças, as ignomínias, ou o interesse dos ricos em detrimento das necessidades dos pobres. A poesia não se presta ao ímpio e ao tirano, simplesmente porque a eles não obedece. O segredo da poesia é franqueado apenas a quem ama a natureza, os seres, e as lutas gloriosas em defesa deles. No nosso tempo, ou em qualquer outro, todos os que combatem pela vida e pelos povos oprimidos são, em última análise, poetas.

São poetas os que trabalham por um mundo melhor, mais justo e solidário. Quando não podem transformar em ações os anseios e os valores humanos, porque não o permitem os donos do poder, mesmo assim são poetas, por desejarem. A poesia é o caminho mais longo, porém mais largo, até a solidariedade. É o acesso mais eficaz para a alma expressar-se no amor, e requisitar a justiça humana, até mesmo além dos direitos do corpo e da consciência. A poesia transmuta o direito humanos em justiça elementar do homem para que ninguém se ufane de sua bondade, e não possa se arrogar direitos antes de reconhecer seus deveres com o próximo.

Então por que a poesia é mais do que um veículo de promoção dos direitos humanos? Porque ela é o destino desses direitos, para onde se orientam, por onde chegam as perplexidades para encontrarem os sonhos de libertação. No território livre da poesia se forjam as contradições entre o velho que teima em ficar e o novo que forceja em nascer. E a poesia acelera este processo de vanguarda que culmina no nascimento do amor e na justiça para todos. A poesia carrega o espanto e o estranhamento. E se embebe da clareza da manhã para iluminar a incompreensão, até que o homem não precise mais explicar seu poema, como Deus não explicou nada quando fez o homem.

Mais antiga do que o Código de Hamurabi, do século dezoito antes de Cristo, a poesia guarda desde tempos imemoriais as leis da alteridade fundadora, as leis do respeito ao outro e do amor ao próximo. Abrindo o caminho para a união dos homens, e a fim de propiciar o bem estar do povo, o rei da Babilônia, Khammu-rabi, mandou escrever num monolito de pedra um poema de 21 colunas, com 282 cláusulas que propunham a implantação da justiça na terra, a destruição do mal, e a prevenção da opressão do fraco pelo forte. Essa legislação estendeu-se pela Assíria, pela Judéia, e pela Grécia, como a primeira fonte geradora de utopias que modificam a consciência coletiva, em nome dos Direitos Humanos.

Revoguem-se as disposições em contrário e os descaminhos a que levaram os arremedos do Código de Hamurabi na longa travessia dos seres humanos até os descalabros atuais. Eximamo-nos de citar a casuística Magna Carta, declinemos de lembrar as contrafações burguesas da Revolução Francesa, ou façamos vista grossa ante os tratados de pós-guerra exclusivistas que lançaram o século vinte na Guerra Fria, na corrida armamentista, e no neoliberalismo. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante, como observou o poeta José Saramago. Nem a Declaração Universal dos Direitos do Homem, um monumento à inépcia política da ONU, pode nos guiar até o oceano etéreo onde deságua a poesia derivada de várias e remotas vertentes, como o Rig Veda, os Upanishads e o Baghavad gita. O que se faz por amor, sempre acontece além dos limites do bem e do mal, como ensinou o poeta Friedrich Nietzsche.

A poesia é o momento da vida em que não necessitamos mais de direitos humanos. Ela transforma o desejo para-si em ética para-além, e força a evolução do eu, na luta pela vida de todos, na qual somos obrigados a conhecer nossos limites e nossas potências para só então oferecermo-nos em sacrifício à espécie humana, num amor que sabe doar, ao descobrir a máxima desigualdade do outro diante de nós, mas que na sua nudez nos convoca a assumir nosso papel na relação. Esse amor, um sentimento que exalta a minha responsabilidade por todo aquele que bate à minha porta, imperativo de justiça, fruto da igualdade entre os seres existentes, tal como na obra do poeta Emmanuel Lévinas.

O poema e o amor dessa poesia é esta ética para além da fome que se satisfaz, da sede que se sacia, e dos sentidos que se aplacam. Poema e amor que me traduzem a inquietação causada pela proximidade do rosto que se encontra diante do meu. E me proclamam eu mesmo poema escrito pela impossibilidade no outro calada fundo em mim. Consistem num adeus ao contrário, convite a deus para que entre e atue sem possessão ou soberania. E por fim, tão brevemente quanto para sempre, promova e enseje o que deveriam ser os Deveres Humanos.

Nesta hora grave em que a humanidade encontra desolada a residência da poesia, no agasalho da qual deveriam fertilizar-se a solidariedade, o amor e a beleza da vida, e em seu jardim deveriam acampar em segurança todos os escravos do mundo, como as ovelhas da obra do poeta Johann Sebastian Bach...Nesta hora grave em que cada homem deveria ter um nome que não se repetisse em outro homem, para a salvaguarda inequívoca da diferença, mas com o mesmo sobrenome Dignidade...

Nesta hora grave em que as crianças, as mulheres e os velhos são massacrados pelos homens, impostores que perpetram a fraude levando na classificação do seu gênero o nome da raça mais espiritual que habita o azul...Nesta hora grave em que se faz mister abolir o desespero para manter ao menos mais um vida além da nossa... responderemos em cada gesto simples do viver, a oportuna e perturbadora indagação do poeta Friedrich Hölderlin: Para que servem os poetas em tempo de pobreza?

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