quinta-feira, 26 de março de 2009


O COITO ÉTICO
"O Desejo é desejo do absolutamente Outro. Para além da fome que satisfaz, da sede que se mata e dos sentidos que se apaziguam." (Totalidade e Infinito, E.Lévinas)


Senhorita, que manda no tempo e na meteorologia da alma,
Obrigado por acreditar em mim antes da manhã enluarada.
Na confiança e na firmeza alvoreceu o primeiro coito ético
Da natureza humana e transitória que busca saciar-se logo.
Ainda ardem a noite e o sol imersos no oceano de espuma.
Emergem em brasa intercaladamente pontas de corpo mole
Para lembrar que aqui só há um compromisso: nossas vidas.
Nada escapará ao poema e à solução mais difícil: não gozar.
Senhorita, não chegaremos a eles, porque não somos céticos.
Temos de crer no amor para não acordarmos mais tão sós.
Lembre-se dos cheiros, das luzes trêmulas das velas à beira.
Não se esqueça que lemos nos olhos todas as novas palavras
E soltamos balões emplumados quando pensávamos em falar.
Registre e grite para si mesma que seu sorriso voltou ao rosto
E que se sentiu leve a ponto de levitar no bem-estar do outro.

Para tanto estou na tua vida
Permanecerei se permitires
Para tanto para tudo servirei
Tira teu desejo de minha íris.

Senhorita, a lua ainda não nos convidou para a festa da noite
E o tropel da carruagem já ressoa no penhasco da penumbra.
Um raio de luz fez escancarar o portal de estilo renascentista
Por onde esvoaçaram todas as borboletas no afeto produzidas.
Subimos rampas íngremes para adivinhar a força dos cavalos,
Atingimos os celeiros secretos do céu onde esqueceram a paz.
Não, Senhorita, os guardiões não nos receberam, tão ocupados
Estão com a insânia de quem pensa pra amar, com tanta ânsia.
Desembarcamos, lembra Senhorita?, tudo o que nos faz artistas
Para realizar a mais longa e inesquecível noite de nossas vidas.
A magia da espera firme e a deliciosa disciplina dos iniciados...
Isto que nasce após o tédio e o desgaste dos amores bastardos.
No resguardo da montanha, abrimos o baú dos mitos sem uso
Para ofertar a quem vier depois o que o amor não lhe pôde dar
De tanto matar a tentação em seu aspecto menor e incompleto.

Estou na tua vida portanto
Permanecerei se permitires
Agora a servirei por encanto
Tira teu desejo de minha íris.

A lua dança sobre o solo opulento de uma noite inventada
E nos estrados do celeiro a filha da estirpe selene volteia,
Virginal como as cortesãs, mundana feito santas estranhas.
Coreografa um prelúdio de pavanas compostas pelo vento,
Risca uma névoa de pranas como carnal ventania quântica.
Alavancas subatômicas desatam a matéria emaranhada,
Interposta entre tudo que dorme no universo e os sonhos.
Os movimentos paralisam o tempo de lâminas e escamas.
O que penso da duração é a duração do que penso durar
E o que se pode ser na extremidade da elegância é trama,
Tecidos costurados a músculos, flâmula elétrica de nervos.
Seria preciso falar de atos obrigatórios na ética dos deuses,
De faíscas suspensas entre velhos companheiros de armas
E de um rio arcaico que já verteu na antiguidade do futuro
Onde o drama de heróis coagula na certeza humana da paz.

Estou mais na tua vida
Por partes ou inteiro
Coisa na outra contida
Teu desejo, meu anseio.

As poças do óleo de amêndoas vão curando o couro brejeiro.
Os hálitos do celeiro incorporam as propriedades balsâmicas.
A Senhorita respira as essências férteis do fogo e do girassol,
Beijos chegam de todas as paragens como se viessem de reis.
Seu corpo começa a ser colonizado pelo lavrador de emoções;
Ele é um servo de um distante lugar cheio de beleza e ardores
Que traz uma visão nova da responsabilidade e dos cuidados
E vem alargar os horizontes da compreensão de raros desejos.
Da força de suas abordagens nascem a reverência e a cortesia.
Desembarcam de galeras sem bandeiras encomendas de Deus
Para adornar e festejar as fomes e as sedes fundas e sublimes.
Claras chamas sagradas peregrinam pelo recinto e se alastram
Com as endorfinas que fazem vibrar a carne concentrada e nua.
A volúpia está no olhar de âmbar molhado pelas águas tépidas
E o erotismo dorme nos gestos plácidos, entrelaçados e épicos.

Tua vida é um mérito
Dela tomarei partido.
Se puder levar a sério
E se isto fizer sentido.

Para levar-lhe as honras de uma nova vida, trago todas as luas
Até aquelas que não tiveram sentido, que iluminavam em vão
As dores de parcerias desfeitas que esqueceram de se lembrar
Que havia mais a fazer pelo amor do que exigir mais satisfação
E nada ousaram pelo impulso do reencontro, perdoando dívidas
Que não usaram recursos que o passado feliz mantinha vívidos.
A honraria que podemos conceder a nossas vidas é a revolução
Efetivada aqui e agora nesses campos excêntricos e fantásticos
De pétalas de rosas vermelhas na crista de nossas peles úmidas,
Um motim dos desejos destinados ao auge efêmero e à saudade.
Senhorita do amor pirata que assalta as galés da sua descoberta,
A máxima transgressão é o respeito humano e as transparências
Que deixam entrever as saliências do vale translúcido da libido
Coberto dos pomares da psiquê, onde germinam o fruto da ética,
A flor da utopia, o desejo de esperança, o amor pela humanidade.

Se estou na tua ilha
É que inda navego.
Viverei em vigília,
Antes estava cego.

Não sei se é bem devaneio de mudos poetas ou chão de estrelas...
Abaixo dos alumbramentos não há rigidez onde pôr os passos;
Acima dos assoalhos, mesmo no firmamento, não sobra sonho.
Tudo é poeira, éter e massa concentrada, como aliás neste amor
Evanescente e próspero de instantes, pródigo de explosões frias,
Não porque o gozo espera vadio e esquivo no ângulo da concha
Mas por causa dos efeitos introvertidos da languidez do sentido.
Os pontos eróticos se multiplicam a varejo e unem-se em curvas
Onde capotam as intenções apressadas pelo bombear das marés.
Em que lua levitam as nossas individualidades, depois da mistura
Que suplanta egoísmos na exigüidade de sujeito das existências?
Murmúrios são dislexias de amantes que não se complementam
E que só se cumprimentam antes de invadir latifúndios sexuais.
Tu terás a quem amar, tu terás por quem existir, sem ser para ti!
Homem e mulher Ele os criou mas nós revemos os seus sonhos.

No amor pelo outro
Nem mais distingo
Se sou eu esse oco
Que hoje extingo.

O celeiro não é uma ilusão, mas uma mágica nascida calamidade,
Um acaso nascido cansaço, um destino nascido responsabilidade,
Uma liberdade nascida doação, uma morada nascida feminidade,
Uma transcendência nascida fecundidade, infinito nascido rosto,
O erotismo nascido bondade, hospitalidade nascida pressuposto.
O celeiro não é uma ilusão porque o gozo não precede a verdade
Inscrita na condição fraterna de amantes sorrindo numa banheira.
Senhorita, quando me pediu que eu a relaxasse, era o prenúncio
De que nenhuma face pode defrontar-se com outra sem renúncia
A todas as supostas intenções, interesses, quereres e expectativas.
Senhorita, para que serve a filosofia? Para pensar o pensamento
Ou para melhorar a relação entre os seres humanos e o caminho?
Pra que filosofia se faltar a um só alguém abrigo, pão e carinho?
Na banheira com nossas dores imersas e suspensas é que eu vejo
A fome de mais fome, a sede de mais sede, desejo de mais desejo.

A vida que recebo
E nesta noite aflora
Tem mais segredo
Que luz da aurora.

É estio de tempestades o corpo em brasa, paciente, sendo alterado.
A memória celular solta o brado descontrolado dos cios ancestrais.
Quem é esse que voa numa sabedoria ascensional no céu da carne
E absolve a virilidade que, no tormento, represa o caudal do afeto?
Mas ela permanece nua de punhais e vergonha e pudor e sedução;
Ainda em febre, ainda em fogo, ainda em pedra, ainda em espada,
Febril, ardente, rija, efervescente, em delírio e frenesi anunciados,
Retesada num êxtase imaculado, fértil na enxurrada de estrogênio.
As coxas, o dorso, a nuca, as nádegas, o ventre, os flancos, a anca
Estão paralisados, magnetizados, em estupor caótico, sub judices.
Nada pode indeferir o cavalheirismo da mão que apalpa os suores
Híbridos com a umidade de um verão irrevogável, ora mais ainda.
Ele cava os desvãos musculares com a piedade dos servos pagãos
E ela berra por dentro, bem por dentro mesmo, pelo avesso, falida.
Plácida, não contrai a plástica, não eriça pelos - amada no desvelo.
A glória de pertencer
Não é louvor do elo,
Mas enlevo à mercê
Do que há de belo.

Senhorita, posso te ouvir? Por que a sua voz parece não obedecer?
Somos abençoados nesta noite em que os satélites são os corações,
Namorando de longe os enamorados, sem ventania, sem correrias.
Gostaria de apaziguar outros seres, mas é melhor cuidar só de nós
E depois dos nossos filhos tão amigos, então de quem canta de dor.
Aqui entre nós repercutem esses balbucios sentidos, e quero dizer
Que o amor é um sentimento político e social - a paz no horizonte!
Nosso poema ético vai buscar a fluidez matinal para chegar longe...
Amanhã, vamos ouvir as falas desobedientes, novas interpretações
Para os desejos que abrigamos aqui em todo o esplendor do celeiro.
As luas recônditas que atuam no interior das almas vão se ensolarar
Para que uma inédita cultura de erotismo influa no pessoal do beijo
Apareçam nas praças em alvoroço os casais que acharam o segredo
De passar horas e horas orquestrando brinquedos ternos da pulsão;
Violinos, harpas, pianos, tambores, flautas, violoncelos da paixão.

Desejos de oração
Corpos bem juntos,
É a lúdica religião
Do prazer a fundo.

Como uma nobre emoção de arte naïfe, afundam os dois náugrafos
Como gêmeos num útero que ainda gera o amor prometido às luzes.
A inocência dos botões desabrochando sem espaço faz osmose tátil.
Toda a carência de cada história comparece à receptividade mútua;
Sutil, por medo da barbárie que reflete no espelho de outras vidas,
Sonora, por influência das melodias que embalam a estética cênica,
Pulsante, por ter os corações fina vizinhança, no escambo do fluido.
Ninguém sabe de quem é este corpo siamês, mantendo identidades.
A volúpia é sim coincidência dos atores e se alimenta da dualidade
E eis que surgem simultaneamente fusão e distinção, nos passivos
Transfigurados sem intenção, egoísmo ou jactância já que é ânima
E não carne perturbada pela paixão que ignora as regras desse jogo.
Os sujeitos não existem antes do projeto, nem muito menos depois.
Senhorita, desculpa a fratura exposta, subjetividade que se desloca.
A troca do carnal com o terno faz ressurgir o que já fugiu de mim
Mas, por favor, o ideal está fora de nós, é mais que projeto de vida!

Num instante nu
E logo em gala.
Nudez não é tabu
Na voz que a fala.

Na clandestinidade, longe mesmo de teu nome e de teus existires,
Desce em ti uma presença de si poucas vezes instituída ao acaso.
Tudo o que se passa aqui entre nós diz respeito a toda a gente nua.
Nos afastamos para ver de novo se restou outro em algum de nós,
Face a face e cúmplices na esfera da fraternidade, na rica miséria
De não termos mais nem vestes rendidas pelos retalhos restantes.
Nos exilamos do reino onde naturalizamos a satisfação em férias
Que é para estremecermos na idolatria cheia de ternuras de adeus,
De pé, desfalecidos, eretos só por causa do olhar recíproco, ébrios
Tendo declinado dos vinhos, da uva e da folha da parreira, rubros
De um rubor de seda, elegante e indefinível recato, hino gestual.
Ali parados, como dois monumentos ao noivado, sábios da espera,
Até esgueirarem-se da espreita, vacilantes e enfeitados de gotas.
E ela treme, tirita de sexualidade tardia, pássaro sem plumagem...
Tanta sedução sem devoção, tanta vergonha vã, fins sem princípio.

Aqui pronto, livre,
Despeço-me hoje.
Passados já tive,
Amanhã é arrojo.

Vivemos num tempo onde não se constrói mais nada em comum.
Embaraça a escassez do humano nas tramas da intencionalidade!
Não me dirijo a gostar que me amem, e quem aqui se reconhece?
De outra forma me perturbo antes de fatores razoáveis do desejo.
Que rastros deixaram no chão do celeiro quem se deu até o gozo?
Não parece humano levar tão longe quanto possível tanto artifício.
Existirá um projeto deliberado para eliminar o direito à diferença?
Plano mórbido de calar o doido dom da doação que nos inventa?
Ninguém é a própria iniciativa, mas uma iniciativa é bom início.
Ninguém é a própria iniciação - o rito da alteridade desempata
Enquanto obra de luz que desata incessante, agenda sem datas.
Como construir juntos um mundo em que casais atuam sozinhos?
Cada um por si num jogo erótico de domínios imóveis e vizinhos.
Senhorita, por que não me disse que sua dor era maior que o estar?
Por que apenas não me implorou que eu cantasse pra você dormir?

Infestada de festa,
Fantasiada de dó.
A dor que resta
É que não era só.

Dúvidas que não resolveremos no reinado fugaz da lua coagulada.
Gratuita é a vida, e a verdadeira causa do amor está longe demais!
Então fugiremos das questões totais e das respostas banais de hoje.
Se encerrássemos cada jogada com uma declinação, quanto adeus!
Mas seriam despedidas insolúveis de quem se mutilou para não vir.
De tanto não gozar estamos partidos; e partimos finalmente de nós.
É para enxergar a ida que une, que nos afastamos nestes carinhos
Minando lentos da flor da pele como a fumaça que exala do suor,
Como o vapor cego da forma tão ímpar, e que já sabemos de cor.
Sacrificado no pano virgem, o servo dói ao se libertar de seu ego,
Sem indagações, interrogações, adagas, drogas e ferrões do verbo.
Tudo o que preparou por todo o tempo se perde dentro do coração.
Surpresas que novas se repetem tal como vêm inda mais do fundo.
Nenhum acontecer amoroso é antigo quando serve mais ao mundo;
Nada faz tão bem saber do que a intimidade que nunca está à mão.

Toda essa bondade
Que o amor apura,
Vejo com saudade
Do que não dura.

Num estado vítreo de saturação crítica, a razão sem caber tanto saber,
O humano, regozijando, vagueia para o vazio vasculhado por suicidas.
Crianças possuídas aprendem, de manhã, a conjugar o verbo comprar.
Jovens dóceis, à tarde vestem-se de donos, para domar e tomar posse.
Maduros em prantos, prontos para a vida, gozam à noite para procriar
Porque toda a satisfação está muito longe da alegria de seus encontros.
O mundo vai se enchendo de amantes que cospem fora seus encantos;
Amantes vão se enchendo de mundos ásperos, áridos, ácidos – grávidos!
Como transplantar no outro a vida que há no gozo que ejaculamos sós?
Viverá nas flores aquele que não soube dar? Só na dor de quem pede...
No desengano que fica como a saudade implacável das tragicomédias:
Este ardor de desfrutar o amor para usufruir daquilo que o antecede.
Será que todo esse vivo contentamento secretado faz ficar em segredo
Toda a vontade de sermos maior que nós mesmos num ato de sossego?
É esta reverência que remete à decência de abrir a porta ao peregrino.

Queira entrar,
Vou recebê-lo.
Quando viajar,
Vá com zelo.

Eu te incentivo, Senhorita, a me consumir imprudente e desenfreada
Todos os meus bens espirituais que disseminam caridade e compaixão.
Faço um apelo para que veja nesse esforço os excluídos e necessitados.
O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença, o desprezo, a alergia
Às qualidades humanas específicas que produzem em nós a imunidade
Da humanidade contra os mesmos vírus que contraímos no desamor.
Quero perguntar por que alegam não haver recursos para os famintos
Ao mesmo tempo em que produzem caudalosas fontes de gozo inútil,
Ao mesmo tempo em que investem no fim da fome de qualquer desejo,
A nos convencer de que a felicidade é o ponto final de toda inspiração.
Quero contestar que se vive para a morte e não para salvar das mortes
Aqueles que nem sequer podem dar em troca tudo o que lhes ofereço.
O melhor dos meus gozos é ser responsável por tudo e mais que todos,
Antes mesmo de me surpreender lidando com minha própria cortesia,
Antes mesmo de nascer na carne da minha mão todo o desejo do outro.

Sim, é bondade
Que chamamos
Aqui felicidade,
Gozo sem dano.

O deliciar-se com o corpo do outro-sexo pode ser mais que transa.
Pode ser o transe sem comando nem prévia direção, como se lança
A uma troca que é justiça de transcender o amor em favor da sorte,
Em nome da sina alheia de ser mais humano, sem que se importe
De ter algo a dizer além do ato de resgatar alguém da esterilidade,
Da imobilidade de coisa que reduz a nada quem está a seu dispor.
Há também um gozo na fala e no canto que faz da troca o clamor.
Se não fosse o poema já teríamos nos perdido na selva sem verde,
No céu sem azul, no mar sem água, no colo sem carne, sós e finitos,
Predadores do espírito, vorazes, acumuladores, anatomias à parte.
Não medir a diferença dos sexos, mas esquecer a atroz indiferença
Que degrada o sentido de levantar-se da cama em vez de se deitar.
Deliciar-se com o corpo do outro-sexo não é possuí-lo, é plantar
Como um jardineiro em terra estrangeira, árvores antes de sombras;
Flores, antes de aromas; grãos e sementes antes do sabor das polpas.

Natureza tão voraz,
Mudo de universo.
Quero voltar atrás
Mas já não peço.

Difícil mas não implausível será evitar as astúcias do gozo represado:
Ele sai na fala, cai na palavra dita nos olhos, e vai no alvo indigitado.
Terminamos por gozar de muitas formas e modalidades e contornos,
Ainda que renunciemos, mesmo que castrados - dá-se a contragosto.
Vaza desbaratado nas manhas de uma barbárie pura e pré-histórica.
Se antes vimos a falência do amor doação, ora vemos ser bem maior.
Como operar a virada ética do coito que é conciliação irreconciliável?
Aqui eu entrego ao Outro o gozo que luta para voltar à pré-alteridade.
Dele não tomo parte, renuncio na pulsão a este retorno que fiz eterno,
Sintomas inevitáveis nas alfombras periféricas, fora do jogo e do jugo,
Alquimia que processa o objeto indizível pelas carícias que eu nublo.
Se estamos aqui além do princípio de prazer e realidade, bem reduzo
A verdade analítica à pré-condição que também torna inefável o amor
Ao percorrer o caminho da união, egresso do fragor das falsas faltas,
Convocado à odisséia metafísica, em constante inquietude nostálgica.

Gozo de súdito
Nasce pulsão.
Vagueia vulto,
Volta canção.

Eis que Senhorita, em genuflexório, plena de pulsão, anuncia o repto:
"Sagro o cavaleiro na Ordem da Ética Sexual!". Não por norma jurídica
Pois justiça é o olhar coletivo medindo a virtude do ato de renúncia...
É preciso ter a idéia do perfeito para conhecer a própria imperfeição,
Meu lugar ao sol, toda a usurpação. Meu proveito como tua denúncia.
O servo desprovido deseja a profanação de suas misérias e vergonhas.
Outro enquanto Outro e o bloqueio de minha liberdade fazem triunfo.
Uma cadeia de terceiros formam a rede de redenção das alteridades,
Cada um justificando a própria existência preenchendo-a das demais.
A paixão de despojar-se da satisfação arbitrária tece a ordem ética,
Põe em xeque todos os poderes sem direito a largar-se às violências.
"Sagro o espaço de um ser que já subiu para libertar a sua liberdade!
Sagro a privação de ocupar este espaço e sagro ainda a dor do nada".
Implanta-se o rito: "Recite o silêncio enquanto resiste aos impulsos!"
Raia a hora de receber o indulto por tantas eras de êxtase convulso.

Trago a memória
Para não lembrar.
Entrego à história
Todo meu desejar.

terça-feira, 10 de março de 2009

EPITALÂMIO

Que exprimir o bárbaro inscrito na pedra
onde já secaram as espumas
seja uma oração às suas feições
de rainha impugnada pelo destino.
Que exortar a luz das deusas que dormem inquietas
em cada expressão sua
seja outra oração que espalhará dúvidas desconcertantes
nas lavouras absurdas de certezas mal ceifadas.
Que as escolhas irrevogáveis pairadas
sobre as vertentes trêmulas da dançarina
seja o último salmo dos cantochãos
virados ao avesso pelas tempestades longínquas
nos mosteiros de damas de musselina
que guardam os segredos das infantas humildes.
Por que tanta vergonha de formatar a face poética
nas indústrias e nas sociedades?
Por que gritam as sílfides se não precisam mais da memória
para fartar o coração?

CATEDRAIS DA SERRA

Chovia na escuridão quando a corte dos enamorados
Navegou serra abaixo numa ribanceira sombria.
A realeza explosiva dos mananciais e aluviões
Erguia catedrais amarelo-azuladas em cada curva.
Contra o medo, contra as deficiências, contra a dor,
Desciam conosco todos os humilhados da Terra.
Abençoados pelo ar rarefeito, refeitos das fobias,
Resplandecíamos com as esperanças e as utopias.
Quando estou em seus braços, penso em direitos humanos.
Iria para o campo aberto ver a dor dos desatinados
Se pudesse ficar mais uma noite em seu colo.
A dor do mundo precisa de mim.
E eu preciso de seus braços...
POEMA SEM CRITÉRIO

Uma estrada ou um destino?
Um destino certo, de estradas incertas.
Segue atrás, voraz, palmo a palmo,
Pra onde só se vai em troca de algo.
Tenaz, sagaz, apenas
Ela escolhe o alvo,
Sem benefício da dúvida.
Não poderia existir em tirocínio
Antes da mira, de algo a ver?
Uma atiradora que se encolhe a salvo
Como uma leoa vota na presa
Antes que a fira, de fazer-lhe o agravo,
De ater o destino de sua fome
À existência finita de todos que comem.
RUA DOS ARAÚJOS

Dona Corina faz carne assada com ouro.
Fingiu desistir da vida, mas ela é a vida.
Djiu-djiu canta para gélidos evangélicos
E suas íris são azuis-olhos-de-humanos.

Vem raiando o Natal, nem só presentes
Fazem a temporada, também desilusões
Como a vizinha despejada, e a distância
Entre fáceis favores e os desfavorecidos.

Lembranças vão chegando, imerecidas
E merecimentos vão sendo esquecidos.
Jogo de escolhas no duelo de intenções
Abre a estação de anseios por algo mais.

Quem desfruta o doce lar no fim da rua
Sabe que nenhum escândalo vai durar.
As faltas e as culpas encontram o álibi,
Pratos limpos esperam sobre a mesa.

A boa vontade supera o efêmero querer
E as certezas tomam o lugar da dúvida.
O que enfeita o templo é luz do passado
E não o brilho provisório do pisca-pisca.

Até quando esconderás de mim o rosto?
Ao cair da tarde, visitas pedem bênção.
O arco da varanda convida àquele reino
De sofás cobertos, tronos de esperança.

No íntimo espaço de recato e obséquio
Nem santos, nem cruzes cheias de dor,
Mas a fé pura da infância que protege
E uma paisagem plácida que descansa.

As portas acessam oceanos guardados
Onde nadam sonhos novos e vencidos.
Desejos que podem separar os parentes,
Mas que se atrasam em respeito à união.

Relatos de lutas ardentes e já distantes
Unem a saudade à vinda de herdeiros.
Tudo é comemoração pela fraternidade
E os corações soam juntos como sinos.

O combate do século ocorreu na cozinha
Entre uma miniatura pinscher e um rato.
Mark e o roedor grunhiram vastos ódios
Como amantes amorosos e amargurados.

Esqueceu a sorte de avisar quem venceu.
O cão veloz, na mesma vila, não lembra -
Corre atrás das almas que descem morro.
O tempo esfria as trapaças rudes do amor.

Os sabores repousam doces na memória,
A visão das paredes descascadas também.
Nunca tive uma família criada às pressas
E que se despediu na fina névoa espiritual.

Todos os dias eu atravessava o véu mágico
E penetrava num mundo encravado na paz:
A cachoeira verde fechava-se atrás de mim
E uma portinhola empenada rangia ao abrir.

Atrás da veneziana, o mini-gigante escoava
Pelas frestas iluminadas do lar de boa gente.
Escrúpulos cínicos e eloqüentes ficam longe
Da galáxia abrigada sob a copa do salgueiro.

Ali, envelhece a luz das estrelas da ternura
Ali, rejuvenesce a gasta e sorridente lição
De que viver é tão simples quando cremos
No verdadeiro amor que nasce da entrega.

Um homem simples que vive de cansaços
Precisa apenas de uma casa antiga de vila,
De um abraço de gente cascuda e grisalha
E do corpo amigo da mulher que o ama.
A FILHA LIBERDADE

I

Uma casa frente à outra
E, no meio, grades e um pau-ferro.
Naquele espaço nasce uma filha
Provida de dois velhos corações.
Por aquele leito descem os rios
Corredeiras rumorosas apressadas.
Mas as margens estão tranqüilas
Ou estavam antes da fecundação.
Uma casa frente à outra
No meio, muros e invisibilidades.
Famílias que são paisagens mútuas,
Vivências e histórias independentes
Que se importam de se expor nuas
E trocam privacidades impessoais.
Uma casa frente à outra
E no meio tudo se faz por acaso,
Embora os destinos se construam
Com o planejamento necessário.

II

A comunidade se ignora, fortuita.
Os vizinhos fingem não se olhar
Ou fingiam antes da fecundação.
Uma casa frente à outra,
No meio a estrada em barris,
Gotejando e seduzindo as sedes.
Um dia a estrada brota dos rios
E já não há mais como bebê-la.
Ela começa a descer por dentro
Para matar a fome de caminhos.
Duas casas, frente a frente
E no meio uma batalha campal
De destinos indisfarçáveis à vista.
A impetuosidade da correnteza
Derruba grade, muro e distância.
Uma casa mergulha na outra
E a filha de dois velhos corações
Começa a cantar bem mais alto
Do que as algaravias das gentes.

III

O encontro do outro é ameaça
Às liberdades mal escolhidas,
Às liberdades impostas na luta
Que se descobriram tão finitas,
Na funda essência tão trágicas,
Quando o encontro suprimiu-os
Um ao outro como as duas casas,
Pela visão, antes das captações
E antes da tomada das bastilhas.
Que será desta Liberdade ninada
De uma lasciva incandescência?
A funcionar a transcendência,
Faríamos melhor nos entregando
À força do outro que se afirma.
Ver que o amor está bem acima
Da apropriação de suas verdades.

IV

Nesta palavra está nossa medida.
Em seu eco a sua transformação.
O ideal não é nossa liberdade mas
O quanto a de todos há na minha.
Só fundar necessidade de ser livre
Ao surgir no outro sua contestação
Que deve convocá-la a exceder-se
Até não mais distante estiver da ação.
QUANDO ACABAR

Agora me diga:
Quando a paixão desenfreada passar,
o que você tem pra oferecer?
Quando a paixão desenfreada passar
vamos dormir abraçados
fazer paella domingo
olhar o pôr-do-sol
jantar junto
fazer compra na feira
escolher cardápio
ler poemas pra você
inventar fantasias
falar do passado
descobrir músicas
escolher tudo
explorar Minas...
admirar a minha lua
desenvolver a espiritualidade
queria que fosse eterna
eu quero ficar colado com você
tomar banho juntos
contando as pintas do seu corpo
fazer xixi no seu pé
vai comigo cortar o cabelo?
faltou rir
nascer de rir
faltou cuidar de cachorro
e fazer um aquário...
Se eu pedisse a Deus ele não poderia acertar tanto.
Vamos guardar esta relação,
a lista do que nós faremos.
Mas quer saber?
Se fizermos tudo isto...
a paixão nunca vai acabar!
COISA

mulher nua, exposta
se encosta como em Roma
você melada e aquática
deserto de vergonha
oásis de pureza
rebelião

mulher repleta de vagina
tosa tesa eu te aliso
todos os teus frisos
mulher traição e loucura
destrincha a carne e
mija mijo de turca

cinge meu corpo dançarino
e eu fico a pino
querendo te lavar

boca a boca
mordemos a ave louca
do amor
(ela grita enquanto nos roçamos)

vamos lá, seja sexo e furor
de bandeja
pisa em minha alma impaciente
mente que sou maravilhoso
A DOCE VISÃO DA LUZ DO INFERNO
(Sete estrofes de sete versos em 7/07)

Eu vejo uma virgem coberta de feridas
Que a aquecem do frio no breu da manhã
E, pelos olhos dos tubarões, sua imagem
De ferro cru, na tempestade devora e apavora.
Não sei se devo prateá-la ou enferrujá-la,
Me arvorar a defendê-la dos autocoices
Ou encher sua vulva de bolas de mármore.

Eu vejo uma sílfide sem meias-medidas
Que imita o abandono cuspindo porra,
Vomita pra dentro a palavra dos outros,
Regurgita falos batidos no liquidificador,
E pisoteia úlceras que extirpa a dentadas
E hasteia bandeiras rubras escrito “Fuja!”
Depois entrega a faca cega que amolou
Para que raspem a crosta funda que ama.

Eu vejo um estacionamento de corações
E um decote retrátil ao comando remoto
Onde estouram cachoeiras de lama podre
Que soterram as rochas de leite vencido.
Eu vejo o cabo das catástrofes no coldre
E uma doce matricida abortando o caos
Que brota irrefreável ao mínimo tropeço.

Eu vejo o mesmo fim que nunca se repete
E os princípios coalhados numa cuia velha,
Uma órfã sem dedos apoiando um mastro,
Estandarte roto e sujo onde não se lê “Paz”.
Uma horda de retirantes nus, exoftálmicos,
Que pára frente ao abismo e atira acordéões,
Desce para buscá-los e nunca mais retorna.

Eu vejo agora que anoitece reabertas chagas,
Ouço cânticos roucos que sangram o sereno
E o colo da sílfide se dobrando sobre o seio
E o peito desarmando sobre o colo das coxas.
O gás carbônico fugindo pelos joelhos unidos
E os calcanhares disparando e batendo a terra
Ensebados da placenta ácida dos desumanos.

Que gosto tem a boca sonâmbula pelas escadas?
Escorre da memória entrevada essência de maçã
E quando as faces descoram e os lábios somem,
Um toldo de lona, da lona dos nocautes sem dor,
Avançam como um cúmulo-nimbo gigantesco
Logo acima das pálpebras encouraçadas da bela
E as palavras desembarcam na indolente surdez

E seus gumes cinzelam num monolito, feito do lixo
Dos lares felizes, um ícone inútil de amor ao ódio
Ao ódio arrependido de quem ficou para trás e só
E, para passar o tempo com o ferro cru da imagem,
Arranca tiras de tecido necrosado e enrola-os bem
Para torná-los cordas que, presas nos pecegueiros,
Vibram melodiosamente enquanto as copas bailam.
O COMEÇO DE UM POEMA

Como posso te pedir um pôr-do-sol
se nosso dia ainda nem começou?
Como querer de ti um amanhecer
se não choramos juntos sob a lua?
Um dia poderemos rasgar as ondas
com a faca das nossas mãos dadas,
Passar da arrebentação mansamente
como quem sai numa câmara secreta,
Imperturbáveis como arqueólogos
que partem correntes para libertar
emperrados destinos, e acabam
descobrindo correntezas antigas
que se moviam para o fundo
com a força que nos podiam levar
para dentro de nossas almas puras.
DIREITO DE SONHAR

Tem coisas que não se abrem às machadadas
Nem à paixão, muito menos à convivência.
É assim: chega-se num horto, depois do sereno...
Tem uma falena morta depois de voar a noite toda,
Um casulo, um graveto em pé, uma pétala em forma de coração.
E você vê que a civilização não é natural,
Que a natureza não é civilizada
E a terra recebe o trabalho humano através do olhar.

Nestes castelos de devaneio, tudo é sólido como promessas.
Tudo é simples como o sol da manhã.
São projetos!
É seu olhar que ilumina o mundo,
O seu projeto ali naquele instante.

Você tem o direito de sonhar
Depois de ter nascido em lugar errado,
De ter sido amado errado, por gente errada, nas horas erradas
Com promessas vazias de humanidades, sem sentido gratuito...
Você tem direito de sonhar mesmo estando tudo errado!

Gratuitamente coloco coisas em primeiro lugar
Sem qualquer ligação com o sofrimento.
Será gratuitamente? Porque fujo?
Ou porque devo achar-me fora de minhas contingências?
Vamos nos achar no amor, sem interesse nenhum de nada!

Agora, por que temos direito de sonhar, me pergunto?
Porque ninguém esquece de sorrir.
Ou esquece?
DEUS

O ser se desinteressa do ser
quando o humano se produz
no homem que responde por seu próximo,
mesmo por aquele que é estranho.

Deus não é apenas a criação, a onipotência,
recompensas ou promessas.
A necessidade e a oportunidade de pensar Deus que vem à idéia
só chegam depois de vislumbrarmos o amor gratuito,
só porque sobrevivemos
a uma época sem ética e sem socorro.

Desejo que esse Deus se reserve ao aqui
com a finalidade não de me guiar ou de me oferecer ao Outro
mas de ser transcendido pelo meu viver,
na qualidade do além, e não no além.
No predicado do além que opera aqui.

E depois: Que tudo que ficou se alie aos próximos viveres.
Fora do ser, mas na sua nostalgia sem que alguém o lembre.
Ente deixado cheio do seu valor, mas deixado.
E outro ser de mim nasça no Outro, em outro lugar,
afirmado em mais uma diferença.
Aí se insurja um outro Deus possível,
e só possível porque diferente.

Falava que desejo esse Deus,
o Deus do meu ser
sobre o qual não desça a posse,
porém o abrir-se
de que sofre todo ente!
ALMAS HUMANAS

As almas gêmeas são humanas.
Podem mentir, podem ser livres, podem sonhar
E ao mesmo tempo pecar o pecado injusto -
Discordar, partir, ser livres para mentir,
Livres para manterem-se prisioneiras.

As almas gêmeas tremem diante do óbvio
A vida de novo, o amor de novo, cuidar-se,
Dinamitando os seus bloqueios, pintando as unhas,
Rasgando o aço da cela com garras suaves.

Sonhei que estava dormindo com a cabeça no colo do meu anjo da guarda.
(Saudade do tempo em que tinha desejo de ser viúva).
Caída na realidade, sonhando com o amor verdadeiro,
Esquecí aquele sonho por pura emergência
Porque o sofrimento real é muito maior...

A vida é mais terrível que a morte.
Estava brincando de boneca naquele lugar perdido
Com uma vaquinha Jersey pastando e aquele cheiro de queijo
E como o homenzinho do chapelão, sonhando em voar...

Ele me toca! Aperto os cintos, pulo da cama!
Ele gritou, gritou: "Você é minha escrava!"
"Tem que me respeitar!"
"É obrigada a se entregar pra mim quando eu quiser!"
Não sou mais, não quero mais!
Ele saiu com ódio e eu fui feliz tomar banho
Me fotografar...(Que vitória, hein?)

Qual o signo dele?
Virgem.
Ele está chorando...
Seu marido é um neném!
E você, uma matadora num quarto de espelhos...

Nunca fui a um motel,
Nem a uma ilha...
A MÁGICA DA VIDA

Oh Céus, que distraem os pássaros na ilusão de
que a liberdade está solta quando só revolta!
Oh Céus de todos os matizes e precipícios,
de abundância restrita às tempestades sem início!
Esqueçam os reinos de desmandos e sacrifícios -
Do outro lado de seus azuis os leões são mais humanos!
Trague os magmas dos penhascos vulcânicos a borboleta do destino,
para que os Céus renasçam dos oceanos.
As dores das profundezas não passam de fáceis escolhas,
quando o que temos pela frente é uma difícil colheita de acasos.
Oh Céus de magnólias secas e tulipas sem pensamento!
Devolva as estrelas para que os corações sirvam aos desígnios
este seu Deus que já se desvirtuou nos ardores da raça da razão.
Céus, quem são vocês que não suportam o claustro da Terra?
Réus da ventania, culpados de desertarem da luta dos homens...
Não neguem o bálsamo das brisas às tristezas outonais de abril.
Entreguem-me a mágica intacta, arranquem-na destes maxilares.
Preciso encontrá-la exuberante de vocês, febril, lúdica, imaginária!
EU QUERIA ESQUECER MEU NOME

Eu queria esquecer o meu nome.
Ao dizer isto, jamais conseguirei.
Só se pode não ter nome,
se o nome for tomado à força.
Não é como fazem com os signos,
arrancados aos objetos-em-si,
primeiro ao batizarem as coisas
depois ao definí-las e, a seguir,
tentando aprimorá-las no ato
de comparar isso e aquilo,
disfarçando a natureza
com inveja de uma existência
não precisar de nome.

Por que precisamos de nome
se já somos homem?
Que homem é isto
que ainda precisa de nome?

É preciso ter um nome
para lembrar que um dia
seremos lembrança pronunciada.
Mas, é um nome que ficará de mim ou
ficará de mim gesto e presença
no momento da dor do outro?

Solapar um nome é desumanizar
a vida autoral...
a vida outrora...
Tolher o que há de autonomia
Antes do desejo erguer-se.

E um bicho sem nome, à solta?
O que é o bicho além de espécie?
Que espécie de homem é só sua raça?
Um bicho é soberano de sua vida.
O homem é soberano de seu nome,
mesmo que não o tenha escolhido.

Como a vida nos educa e consiste,
acaba que o nome nos escolhe.
Não por sublinhar um sujeito,
mas por nos fazer sonhar
que somos dignos de singularidade.

Não somos nada disso!!!!
Nem nome, nem dignos...
E só seremos singulares
no átimo do amor
- esse o nosso atributo
e sermos precursores do amanhã.
A NOVA LEI DAS MATÉRIAS

Os escolásticos que me perdoem,
Toda coorte de escravos de Kant
Mas a erudição e a consciência
Promulgam, sim, leis diferentes
No corpo, na matéria, e na linfa.

A educação em direitos humanos
É a criação de aberturas corporais
Vivências do puro resistir da alma
Às frias, ideais e vãs congruências
Do filósofo que recusa o despudor.

Cânceres são linguagens de mudo,
Mutilações de quem se normatizou.
O espírito apodrece nas logorréias
Porque foi suplantado nas certezas
Quando podia ser o sopro do corpo.

O crepúsculo do dever abriu vazios
Onde já havia abismos incompletos.
Não chegamos a nos ver indivíduos
E estamos sós apenas como pessoas.
Sempre a falsa luta pela autodefesa.

Rasgar a carne nas conscientizações
Não é um imperativo mas é honesto
Com a história humana neste mundo.
Os poderes das instituições vigoram
Nos projetos de libertação narcísica.

De um lado novos esclarecimentos,
De outro desprezo pela encarnação.
É dizer que precisamos de gozo e fé
E também de satisfações particulares.
Nada que nos esterilize a alteridade.

A consciência mora no corpo e é ele
Que inaugura cada fenômeno vivido.
Cuidar de uma nova lei das matérias
Não é limpar o sangue que extravasa.
É deixar o pensamento escalavrar-me.

E depois dar ao outro tudo que penso
Para que seja livre de peso meu saber.
Englobar e reter pressupõem segredos
Que só poderei doar nas confidências.
Só confesso o que guardei mesquinho.

Violência no compartilhar, a confissão
Já é ruptura da fisiologia sem janelas.
Se, de outro modo, cinzelar o corpo
Com a arte de uma filosofia que zela
Terei ficado inteiro logo ao me repartir.

Um corpo que não precisa se entupir
Com o pensamento de pensar o tudo.
Dele germinará o mais fino espírito
Que estava exilado quando dividido
Para servir a Deus e ao corpo egóico.

Por isso a dor quando tenho de dar,
Por isso a tola perseverança no ser.
A personalização exacerbada e crua,
Que azeda insípida, mofa intragável
Sem o tempero e sem o fogo da vida.

domingo, 8 de março de 2009

O TEMPO ALHEIO DA EXISTÊNCIA

Não era isso o que queríamos dizer:
Ilusões, vaidades, e o vento que passa...
A vontade está por trás de toda Idéia.
Profanando, desvirtuando, infectando,
Justificando os fins dos velhos desejos,
Insepulto ofício sem saber que missão.

Os atos e suas intenções escorregam
Para dentro do coração transferido
Como se quiséssemos doar ao mundo
O órgão que sentimos, em nossa ferida,
Que falta ou que se degrada em lapsos
Nos organismos criados pela consciência.

Homens e mulheres em plena soberba
Tornam-se robôs da própria natureza,
Meros resíduos individuados, cidadãos
Em conflito de sentidos, leis e morais,
Que também nunca chegam, felizes,
A serem parte de um povo soberano.

Entorna sobre as ordens superpostas
Este caldo mesmo de indivíduos nus
Privando-se uns dos outros, decaídos
Embora continuem a se auto-afirmar
E a fingir que toleram o tempo alheio da existência.

Assim esvaem-se caprichosamente os ideais
De contextura humana e de reciprocidade,
Em nome da inviável barganha de amor,
Mas do amor que um leviatã de estimação
Subverteu por indomável ardor de expiar,
Quem sabe apenas uma curiosidade de olhar
O que tem no outro que ainda falta em mim.
(Despenhadeiro secular aberto a fórceps
Pela ânsia tardia de viver em coexistência
E ao mesmo tempo sagrar-se ao Absoluto.)

Confiança! Confiança!! Aturde a entrega
Que a necessidade e o acaso impõem solertes.
Não poderemos fugir das demandas cavadas
Que são extraordinários úteros que cobram...
Que voltam das auroras para exigir o soldo
Da luz vital que emprestaram aos entes tolos.

Pior que não somos frágeis nem vulneráveis.
Sofismamos a miséria ainda que miseráveis
Para que nos desculpem a falta de nobreza,
Desobriguem-nos de pálidas solidariedades.
Mas quem? Quem irá cair no conto do perdão?
Se cada um por si promove a mesma infâmia.
CARTA AO VILAREJO

Por favor, leia a carta que um cão está levando!
Um mensageiro sem razão é mais ético
E vai deixar a carta com menos ambigüidades.
Leia que as doenças são curadas pelo amor e
Que são produzidas pela falta de amor.
Leia o que não está escrito, largue a carta
E fite o olhar do cão esperando agradecimento.
Depois esqueça o que não devia fazer.
Mire-se nos direitos anteriores à consciência.
Agradeça ao cão e, com ele, saia a passear.
A mensagem da carta será externa à carta
Como perceberá ao sentir o vento soprar.
O NOME DE NOSSO SEMELHANTE

Vivo em paz porque estou quieto em meu amor.
Logo me desoriento porque ouço trovões e tiros.
É assim mesmo a erosão da segurança celeste.
Não estamos no céu, mas ele pode estar em nós,
Sustentando as nossas estrelas e a imensidão.
Vivo para a paz, é melhor, na inquietude de amar.
Logo poderemos nos orientar juntos para a luta,
Evitando que a condição humana nos ultrapasse,
Permitindo que a responsabilidade seja terrena,
Tão contemporânea quanto espontânea e afetiva,
Que consagre a ética do lidar e não a bela idéia
De sermos mais ser-em-doação do que humanos.
E só então termos o nome de nosso semelhante.
CAPACIDADE DE ENTREGA

Parei para chorar por amor.
Parei de sofrer e de sorrir
E estanquei rios de sangue
Que iam verter até o fim
Para chorar de tanta vida.

Neste leito de corredeiras
Passou a água do sentido
Na direção do lago divino.
Folhas, frutos e sementes
Partiam para a fertilidade.

Caminhávamos tranqüilos,
Disponíveis, sem projetos,
Pensando em salvar vidas,
Abrir-se, abrir-se até o topo
Num rasgão de cima abaixo.

É que a luta pelo amor virou
A grande luta pela vida geral.
Nesta lida, ação sem paradas,
Rompeu os limites possíveis
Nossa capacidade de entrega.

Parei para chamar de amor
Todos os elos, laços, liames
Que na planície do humano
Reatam afetos fracionados,
Reintegram mãos desunidas.

Não fiz críticas nem reparos.
Aceitei as fortunas diferentes.
Se um dia descansar do viver,
Será o mesmo que prosseguir
Para além de nós que andamos.

A MEMÓRIA DO AMOR

Um beijo é um beijo, e um pôr é um pôr.
Um beijo é só um beijo, e um pôr só um.
Muitos beijos virão depois, muitos pores.
Morreremos, o mar levará as roupas,
E cada crepúsculo terá uma cor só dele.
A memória do amor não morre amanhã.
Talvez seja ela que restaure os tempos,
Ice de volta o sol que vimos mergulhar.
Por isso os beijos ficarão depois da ida,
E aquele pôr será a matriz da esperança
Para quem vier depois de termos partido.
A ELETROLA, A ÁRVORE DE NATAL E OS RATOS

Nós éramos classe média mal informada
de que o mundo é pobre.
De que havia neste mundo, longe de nós,
bilhões de doentes e famintos.
O mundo sempre será uma ficção!

Éramos poucos, coniventes.
Não usávamos cinto de segurança
mas ainda hoje amamos nos esconder
em carros e na velocidade.
Somos tantos, tantos quanto são os riscos!

A Terra era um lugar muito ruim de se viver.
Matava-se muito e sacrificavam animais
com sabor de crueldade.
Sacrificavam miseráveis também
mas tudo tinha sabor de tutti-frutti.

Matava-se muito em nome de nós
e nada víamos.
Hoje os frangos mortos têm hormônios
que matam mais lentamente que a fome.
A atmosfera têm gás
que sufoca mais lentamente que as câmaras nazistas.

Éramos felizes e alienados.
Quando os comboios fúnebres chegaram
e nos incluíram,
fomos contaminados por nossas próprias consciências.
Temos na memória que morremos
e nada podemos esquecer.

Como pode haver mistério
se o segredo que imaginávamos guardar um sol novo
escondia cegueira e cremação?
Andávamos soltos nos carros
mas o mundo não podia existir
nem para nós, nem para os pobres.

Nossos filhos ainda aproveitam a boa lembrança que temos
do tempo em que andávamos soltos nos carros.
Mas os filhos dos pobres do nosso tempo,
que não tinham eletrola,
acham que só podem ser felizes se comprarem um computador.

Pelo computador, todos vimos a miséria total,
a mesma consciência sem luz.
A eletrola era uma passagem para o sonho.
O computador, para o esquecimento
de um mundo que não nos deixa dormir.

Minha árvore de natal ficava guardada no meu avô.
Quando fomos pegar, só tinham as varetas...
Os ratos destruíram!
Perdia a paciência com os ratos não sonham...
Mas o mundo nunca foi um sonho!

DALLAS MOTEL

Um motel roxo, com hortênsias na entrada
E um portão onde se lê hora escedente.
Ninguém espera, não há casais se amando
É um lugar onde a solidão vai se encontrar
Com o silêncio, e viver um gozo interdito,
Juntos, na maior algazarra sem finalidades.
Várias baias e toldos suspensos convidam
Cavalos invisíveis a voltar para o descanso.
Longe das turbulências e das adversidades,
O motel fica num vestígio de acostamento,
No meio de uma curva perigosa e, por isso,
Para lá só vão noivos que não se conhecem,
Nunca foram amantes, nem sabem de amor.
Entram, o portão se fecha atrás e se perdem
No meio de uma arena de touros desocupada
Onde a beira da estrada se retira para dormir
Mas não dorme pois não há quem a acalante
Ou a acalme de tantos destinos inconstantes.
Um motel roxo, da mesma cor daquela blusa
Que enfeitava a última donzela vista seminua.
Com hortênsias na entrada, com jeito de falsas,
E um portão que sempre se abriu por encanto
Onde ninguém lia hora escedente não paga.


Toras de lenha encravadas na parede ascendem,
Levam ao vestíbulo, ao patíbulo cru e asseado.
Dois pares de chinelos sujos e velhos destoam.
A luz empastelada pelo basculante enruga o ar
Enquanto as grutas esfoliadas gritam e minam.
Uma televisão faz enfeite e nenhum crucifixo.
Ali o ser não está mais nem talvez nunca esteve,
Cedeu espaço para os indícios do rastro de Deus.
A questão não é de que jeito é possível ser feliz
Mas como, ali mesmo, deixar que tudo aconteça.
Inicia-se já a cerimônia do desnudar das utopias
E caem do nada rubras e serenas gotas de sangue.
O Dallas Motel cumpria a sua função: epifania
Da vida que volta de um grande passeio etéreo.
Desespero! Não há conforto para o Irremissível.
Como tamponar os rios que já deixaram a fonte?
Uma voz roxa brota como um "eis-me aqui" rude:
As ordi! Sem algodões ou espuma de travesseiros,
Jorram os plasmas de todas as incuráveis feridas.
O patíbulo incha e se transforma num mole edema.
A voz retorna ao desconhecido pois ninguém havia
E o pensamento do pensamento é que não há saída.

Dallas Motel, um motel roxo, no meio do não-fim.
Não sopra o vento, a poeira sossegada lembra a Lua
Embora o sol ferva numa tarde de espera desinfinita.
Como fomos parar ali? Procurávamos apenas o amor
E encontramos veias abertas de um mundo saturado.
As palavras se foram sem se esvair e a nova desdita
É que os ditos não servem à Obra de indicar o Outro.
Esvaem-se as entranhas pançudas de vãs fatuidades.
Tudo sangra. A sanfona que divide o cômodo e a luz,
O espelho silencioso e que esqueceu a sua discrição
Para refletir nossas impossibilidades em vez dos ardis,
Além do nariz, ainda inundado pelos perfumes tardios.
Uma pedra voadora tem-nos a comandar seu destino.
Todos os mostradores estão parados e um violoncelo
Range na vinda de espíritos da roça, em rota de cura.
Não havia hora de ouvir, e as pálpebras vão cerrando
Como borboletas aflitas que extraviam a naturalidade.
Não havia hora de ter (a posse crispa-se sem viva'lma).
Não havia hora de ver, só para os anjos que entornam.
Não havia hora de sofrer, pois o mundo parou lá fora.
A pedra voadora, que cortava os céus sem maravilhas,
Quartzifica-se, turmaliniza-se, topazia-se, gema vária.

Fatura e chamado. Uma portinhola curva de madeira
Abre-se como o portão para que se veja um papelote,
Nele o garrancho de rabisco com o preço da estadia.
Um circunspecto, monástico e eclesial papel de pão
Indicava o custo da escatológica visita ao motel roxo.
Ao lado, uma terrina barata com sete pedras de gel,
Granizo encomendado aos aluviões da Mantiqueira.
Vinte reais tão paliativos quanto a compressa gelada
Não estancavam o fluxo escorchante da fome impura
Que acometeu a Humanidade bem antes dos motéis.
Sim, esta gana de interstícios e satisfações abstratas
Conduz à hemorragia que descasca corpos por dentro
A torná-los exangues e secas casamatas de desencanto.
Ecoam as espessuras secretas dos femininos ir-e-vires
Incorporam-se do turvo mistério das presenças felinas.
A separação que se delineia na intimidade da morada
Funda novas relações com os elementos e as vitórias.
A verdade conta frescas histórias sem a ruína do luto
Porque os bisturis já escamaram as almas encrespadas
E logo-logo bafejaram os elíseos das coxias cabangus
Entontecendo os ardores, purgando a dor das sombras.
E a carroça carregada de tonéis de sangue abarrancou
Pelas franjas da leiteria, suas rodas guinchando afetos.

É isto que fizeram os ectoplasmas: cirurgia espiritual.
Sete meses e doze dias de frustrações irreconciliáveis
Inverteram-se na plaqueta da porta do segundo hotel:
Duzentos e dezessete, na mágica pressa dos pacientes.
Podia ser qualquer espera encarnada e sanguinolenta
E toda faceta numérica das volutas mais submarinas...
Contudo, resplandeciam na estrada eras imponderáveis
Que selavam sacramentos além das mortes e das vidas.
Postas coaguladas aos borbotões saltavam em vômitos
E foram lacrando as coisas como assinaturas imperiais.
Seja qual for a razão pela qual se morre, sangrar assim
É preciso, para avizinhar-se da vida, alma inda isolada,
Para justificar o encontro a nu, substancialmente ético.
Não esquecerei o dia em que o acidente vascular nasal
Levou-me ao motel roxo, com hortênsias na entrada
E um portão onde se lê hora escedente súbito se abriu,
Um porteiro chamado Elvis sem vir colocou-se as ordi,
Um estrangeiro que me entregou seu si, sem condição,
Um copo de gelo sem algodão e tudo por vinte reais.
Naquela arena de touros deserta eu fabriquei o tempo
Que, em hebraico, equivale a convidar. O futuro dado
Como sendo o que nos vem do outro, sem obsessões.
Fui à janela do corredor e vi um pavão abrir a cauda.

Santos Dumont (MG), 8-10-2007
JONAS E A VERA ÉTICA

"Basta de sono! Não durmais! Glamis destruiu o sono! Por isso Cawdor já dormir não pode, Macbeth dormir não pode!" (Macbeth, Ato 2, Cena 2 W. Shakespeare)

I

Jonas não pode velar a existência.
Gostaria de ficar acordado,
aderido ao contrato irrescindível
feito pelos chocos vultos viventes
com a noite e sua vacuidade.

Mas a noite é cheia de carnegões,
uma pústula de sementes pútridas.
Como escoar-se por estes ralos
e ainda vigiar o régio labirinto,
passar pelo sono e ainda sonhar?

Ser uma vela acesa na escuridão
para que os caminhos sem fim
sejam caminhos em seu tempo,
os instantes não percam alegria
e o prazer de buscar a chegada.

II

O resultado é trágico e inevitável:
Jonas cega-se e esmurra os muros.
Usa ainda as facas também cegas
e sangra o que não se pode cortar.
Sem nunca abandonar seu desejo
de vigiar o que vige eternamente
o que, na vigília, e intensamente,
se revela com toda a virulência.

Jonas não poderá jamais dormir!

III

Velar, revelar, ocultar, cegar-se...
Como escapar da rude dualidade
do cansaço cuja cura é a insônia?
Seu inconsciente o trai toda hora
e suprime desejos, pulsões, élans,
até Jonas não mais saber se é feliz
ou se tem um ser vivo dentro dele,
arrebatado pela própria fatalidade
em confronto com a própria aurora.

IV

Para esconder a existência, dormir.
Encontrar a existência, só no outro.
Para revelar a existência, despertar.
Para fugir da existência, sair de si.

Ao dormir tal bula não faz sentido:
Para velar seu corpo, não está aqui.
Para velar-se morto, quem está ali?
Se dormir, Jonas não poderá velar-se.
Estará cindido!

Onde ocultar o corpo fora da vida
se ele está intrinsecamente ligado
ao espírito e à totalidade do outro,
pela ética...?
Para onde levar o ser de seu corpo?

Fita infinitamente mas seu fito
é buscar, invadir a originalidade,
se candidatando escatologicamente
ao infinito...
Não mais ser devorado
pelo tempo doente, claudicando no ente,
se dissolvendo no infinito, parte já do espírito,
além da identidade e de nossos instantes.

O corpo não tem lugar para desaparecer.
A existência nunca será sua campa!
Então, se todos o que é estão cindidos,
em que si mesmo ocultar-se?

V

O que Jonas quer: velar ao cobrir?
Ou velar algo que quer descobrir?
Jonas quer revelar-se para escapar,
ou quer revelar que não há saídas?

Talvez a saída de Jonas seja Vera.
Talvez ela seja a verdade de Jonas...
Não pelo amor que tem por Vera,
mas pela ética de o que tem Vera
não ser seu amor, ser sua verdade.

O insone encontra em Vera a ética,
emerge do ser em corpo e espírito,
vai viver em Deus sua identidade.

sábado, 7 de março de 2009


POR UM SABER MAIS DIVINAMENTE HUMANO
por Bruno Cattoni

Além da ciência

Emmanuel Lévinas (na foto ao lado) foi reabilitado nos últimos anos, mas o seu saber, por décadas, esteve exilado da academia com a pecha de teológico. Ele queria mostrar que o saber racionalista era totalitário e excluía do conhecimento mistérios que não podiam ser verificados por meios científicos, e nem por isso deixavam de contribuir indispensavelmente para a compreensão do mundo e das relações humanas. Preconceito semelhante haviam sofrido, pelos filósofos da ciência, Freud e Jung – a psicanálise, e suas vertentes, não mereceriam respeito porque não teriam base científica.

Lévinas, Freud e Jung nunca estiveram sós. Mas a ciência continua sendo uma ferramenta de conhecimento redutora e insuficiente frente aos desafios de um mundo cada vez mais complexo, violento e incompreensível. As bancas examinadoras das academias continuam reverberando o pensamento único e nas salas de aula ainda se ouve professar o saber racionalista como fim exclusivo dos esforços para a identificação dos problemas e para a obtenção das respostas.

Seria possível, num mundo globalizado e diverso, um programa puramente racionalista e empírico, à moda de Kant, como procura da verdade? Ou esta verdade dependeria dos fluxos de poder, que se expandem e se contraem através da história, como observava o filósofo da ciência Paul Feyerabend? Para um cientista, o vaso é um pedaço de matéria posto em determinada forma. Para o selvagem, tem um significado mágico definido pela sua função ritual. Quem tem razão? Podemos, antes, nos indagar, quem tem mais poder. Nas academias do mundo culto, o cientista terá razão e poderá impor a sua verdade. E na selva? Sei, os cientistas vão querer explicar que a diversidade é uma noção ingênua que só serve aos direitos humanos, jamais aos ideais científicos.

O fato é que a ciência está cada vez mais nas mãos de um poder hegemônico no mundo, a serviço dos donos do sistema capitalista. Interessa matematizar o ser humano, com uma lógica muito semelhante ainda, em essência, às doutrinas de inspiração positivista que reinavam no início do século XX. Não interessa a este saber que deseja a tudo abarcar que haja um conhecimento mágico e libertário, que não se pode englobar porque não responde aos padrões racionalistas. Não interessa, enfim, a utopia de um novo ser humano, como queria Emmanuel Lévinas.

O que não tem suficiência científica não é saber e não pode ser usado para a compreensão dos fenômenos naturais, sociais, e psicológicos. É assim que grandes pensadores, como o cientista social Edgar Morin, são banidos dos círculos canônicos mais austeros, com uma ferocidade que beira a censura ideológica. Aliás, ações discricionárias em nome da ciência nada mais são do que censura ideológica.

Não só os poetas consideram que a arrogância antropocêntrica do logos, do "eu penso, logo existo" esqueceu as dimensões do vivido, as dimensões da entrega ao outro, e as dimensões divinas. Viciados nas mensurações da ciência, cotidianamente, trocamos o espanto pela equação, a proximidade pela distância, o convívio pela explicação, o mito pelo logos. São os próprios fatos que atestam o quanto a razão, paradoxalmente, semeia irracionalidade.

Então por que não examinar, disciplinarmente, e disciplinadamente, a influência, em nossa construção de mundo, das categorias numenais, que não se esgotam na fé alienada. O aprendizado divino é essa busca do Infinito na proximidade e no amor, conhecimento negado pelo processo civilizatório. Quando a ciência, via estruturalismo, alcançou esse aprendizado acabou aninhando as culturas divinatórias em nichos estrangeiros e searas pitorescas, em nada contribuindo para um mundo cada vez mais necessitado de solidariedade.

Por que afastar outros saberes, que estão além (ou aquém) da ciência, no esforço de resolver o impasse da Humanidade, desde a modernidade até os dias atuais, que sinalizam o agravamento da incompreensão, e o contraste atroz entre a alta tecnologia e a miséria absoluta de mais de um terço da população mundial?

Ética e religião

Aqui, do meu humilde ponto de vista, quero apenas encontrar um sentido para o viver, na ética e na responsabilidade para com o outro. Organizo conhecimentos, científicos ou não, para levar a minha tarefa a bom termo. Sirvo-me de pensadores da alteridade e da linguagem, como Lévinas e Wittgenstein, que repensou certos conceitos considerados tabus na filosofia da ciência, como a ética e a religião.

"Vejo agora que estas expressões carentes de sentido não careciam de sentido por não ter ainda encontrado as expressões corretas, mas sua falta de sentido constituía sua própria essência. Isto porque a única coisa que eu pretendia com elas era, precisamente, ir além do mundo, o que é o mesmo que ir além da linguagem significativa. Toda minha tendência – e creio que a de todos aqueles que tentaram alguma vez escrever ou falar de Ética e Religião – é correr contra os limites da linguagem. Esta corrida contra as paredes de nossa jaula é perfeita e absolutamente desesperançada. A Ética, na medida em que brota do desejo de dizer algo sobre o sentido último da vida, sobre o absolutamente bom, o absolutamente valioso, não pode ser uma ciência. O que ela diz nada acrescenta, em nenhum sentido, ao nosso conhecimento, mas é um testemunho de uma tendência do espírito humano que eu pessoalmente não posso senão respeitar profundamente e que por nada neste mundo ridicularizaria" (Conferência sobre Ética, L.Wittgenstein).

Não desejo fazer uma profissão de fé pelo conhecimento intangível, mas humildemente demonstrar, por intermédio de uma linguagem talvez cientificamente primitiva, ou selvagem, que o amor é um dado da realidade, um dado informatável e inumerável, mas que pode orientar as idéias em direção a uma compreensão maior do papel do ser humano no mundo, frente aos desafios de uma contemporaneidade tosca, que a técnica e a ciência não conseguiram refinar.

Batizando a sua ética de "ética da responsabilidade", Lévinas não conseguiu acalmar a incredulidade arrogante dos cínicos que o chamaram de filósofo dos direitos humanos. Mas ninguém o contestou na denúncia que fez dos efeitos que a ânsia da perfeita inteligibilidade produz na interação entre as pessoas. Lévinas afirma que somos dependentes dos outros de maneiras das quais muitas vezes não estamos sequer conscientes, precisamente porque tantas vezes pensamos sobre nós mesmos em termos dos critérios avaliativos da racionalidade moderna.

A ética como filosofia primeira é o maior avanço proposto por Emmanuel Lévinas no terreno do pensamento, que também é ação e sonhar, que também é construção de um outro mundo possível. Ultrapassando as considerações da ontologia fundamental, Lévinas identifica, finalmente, a filosofia de Heidegger como materialismo envergonhado. "Põe a revelação do ser na habitação humana entre Céu e Terra, na perspectiva dos deuses e em companhia dos homens".

E, em Totalidade e Infinito, Lévinas explica a sua "técnica", a partir do amor sem concupiscência, e do desejo como hospitalidade: "Partir do rosto como uma fonte em que todo o sentido aparece, do rosto na sua nudez absoluta, na sua miséria de cabeça que não encontra lugar onde repousar, é afirmar que o ser tem lugar na relação entre os homens, que o Desejo, mais do que a necessidade, comanda atos. Desejo, aspiração que não procede de uma falta metafísica, desejo de uma pessoa".

A psicografia como ferramenta do pensamento

A psicografia da mensagem dos espíritos é a transmissão deste saber que excede ao conhecimento científico. A psicografia como instrumento de desvelamento de um outro saber ou de orientação para outras regiões do saber humano, vizinhas desse Desejo do Outro que é fonte de toda a significação. A psicografia deve ser compreendida aqui apenas como parte dos aparatos de apreensão do mundo sensível e do mundo interrelacional, e mais do que uma hermenêutica. A psicografia é uma ferramenta de pensamento para uma fenomenologia da idéia do Infinito, onde vamos pensar a terceira direção, além da imanência e da transcendência do ser.

Esta visita que fazem os espíritos ao mundo dos homens através da psicografia tem uma significação no Outro, porque é ao Outro que as mensagens visam. Onde esta visita pode encontrar a visitação do Rosto e esta visitação pode encontrar a hospitalidade do ser?

Lévinas esclarece: "A abstração do rosto é visitação e vinda que desordena a imanência sem se fixar nos horizontes do Mundo. Sua abstração não é obtida a partir de um processo lógico que parte da substância dos seres, do individual e do geral. Sua maravilha consiste no alhures donde vem e para onde já se retira. O Outro é um puro buraco no mundo. Ele procede do absolutamente Ausente. O Deus que passou não é o modelo do qual o rosto seria a imagem. Ser imagem de Deus não significa ser o ícone de Deus, mas encontrar-se no seu vestígio. Ir para ele não consiste em seguir este vestígio, que não é um sinal; mas em ir para os Outros, que se mantêm no vestígio da "eleidade" (o além do ser). É por esta "eleidade", situada além dos cálculos e das reciprocidades da economia e do mundo, que o ser tem um sentido. Sentido que não é uma finalidade. Pois não há fim, não há termo. O Desejo do absolutamente Outro não virá, como uma necessidade, a se extinguir numa felicidade" (Humanismo do Outro Homem, E.Lévinas).
A CULTURA COMO CHAMAMENTO
por Bruno Cattoni

Como disse o lingüista Noam Chomsky, a única maneira de romper o monopólio da violência exercido pelo imperialismo estadunidense é por meio da opinião pública, dos protestos, da cultura dos direitos humanos e do sentimento de solidariedade. Mas precisamos ser mais pró-ativos e realistas na nossa sensibilidade sobre o que está acontecendo no mundo globalizado.

Como evitar as catástrofes senão através de um chamamento de todos aqueles que lutam dentro de suas minorias, dentro dos seus conceitos de mundo, de suas diversidades, de seus territórios físicos, culturais e espirituais, dentro do seu sofrimento? Um chamamento que seja generoso, desarmado, hospitaleiro, com irrestrita boa-fé. Um chamamento não-militar, não-dogmático, não-conceitual, não-partidário, não-antropocêntrico, e não-messiânico. Um chamamento que não parta de um protesto, de um rancor, de ser contra, de ter ódio, de nenhuma teoria, e de nenhum academicismo.

As premissas devem estar subordinadas à fricção das vivências e das convivências. Os princípios, as possibilidades do amor e da compreensão do outro e da amizade. Já sabemos que ou a hegemonia do neoliberalismo, do fundamentalismo mercadológico, em todas as frentes da vida moderna, é erradicado, ou a sobrevivência da espécie humana estará biologicamente comprometida. Agora, resta fazer com que os povos se levantem do sono do seu esplendor e dialoguem. E que, a partir daí, a banalização do ser humano dê lugar a um ser religado à sua essência humana universal, à sua criatividade e à sua liberdade. A criatividade e a liberdade só terão algum significado quando recobrarmos a importância da cultura, da arte e da expressão poética, na vida humana.

A utopia da espécie humana, em tempos de catástrofe e alienação, depende da sobrevivência biológica da espécie. As utopias podem habitar o ente humano, mas é preciso que o contato com o mundo encoraje o ente a reconhecê-la dentro si, a confiar nelas, confiando no mundo, a extrair delas um devir, a partir da coexistência. A capacidade de transcender limites é inerente ao ser humano, posta à prova nas tentativas de se alinhar com a natureza, ora se aliando, ora entrando em conflito com ela.

O ser humano faz da sua atividade vital um objeto de sua vontade e consciência, como disse Karl Marx, nos “Manuscritos Econômicos e Filosóficos”. “Os animais só produzem a si mesmos, enquanto o homem reproduz toda a natureza. Assim, o homem constrói também em conformidade com as leis do belo”. Não só a consciência é o veículo do ser humano neste caminho, mas principalmente a cultura, que é a melhor parte do que ele pode fazer para ver seu próprio reflexo em um mundo por ele construído. “Quando o homem se defronta consigo mesmo, também se está defrontando com outros homens”. E é uma operação recursiva: quando está se defrontando com a utopia de outros homens, ele se defronta consigo mesmo, com as suas utopias. A atividade da cultura cura o homem de sua alienação, e faz com que o seu produto pertença a ele mesmo e a todos os demais.
A CASA DA ALTERIDADE
por Bruno Cattoni

Ninguém é anônimo. Ninguém é apenas o exemplar de uma espécie, ou tão-somente como o outro o vê. O ser se ultrapassa em sua singularidade, na sua identidade única e intransferível. A consciência da ilusão de que todos são iguais não desqualifica a luta pela igualdade de direitos. Todos merecem ser vistos como seres únicos, cada qual com sua demanda. E todos devem ter acesso à satisfação de suas necessidades humanas de ser amado em primeiro lugar, e de comer, vestir-se, abrigar-se e encontrar um espaço para transcender-se em sua criação, em seu trabalho criativo, em suas habilidades originais de participação social.

O clamor por justiça para si e para os outros sempre foi também uma necessidade de quem vive. Mas esse apelo nem sempre encontra redenção. O exercício da liberdade nos parâmetros formais da nossa civilização atual não é um requisito que garantiu a paz entre os seres e os povos. Mas é possível visualizar e sentir a solidariedade e a tolerância quando há espaço e oportunidade para o exercício do amor, enquanto misericórdia e compaixão. Queremos, e devemos crer, que cada um traz a felicidade em si, antes mesmo de se ter meios para realizá-la. Cada um traz em si também a capacidade de transmitir a solidariedade ao outro que aparece, carente e limitado nas suas demandas mais singelas.

O amor sem atestado de retribuição não tem tempo. Não é só uma doação. É um testemunho de humanidade, de existência positiva, de defesa e promoção da vida. Tanto faz realizar este amor desinteressado em que tempo for. Ele tem duração de permanência. Ele terá sempre, e mais agora, a mesma força e a mesma aptidão de fecundar. Ele faz com que todo o tempo seja preenchido, sem ser totalizado, sem extinguir imediatamente a falta de uma necessidade, que será identificada pelo amor e com a qual poderemos conviver, a partir do amor. Tempo algum será completo enquanto estivermos realizando a obra de atender ao outro, sem compromisso prévio, apenas com a força espontânea da entrega.

A verdadeira justiça não está num código punitivo que submete os anônimos. Isto é presunção de justiça, e não justiça. No campo da alteridade radical, onde não se forma valor antes da responsabilidade ética para com o outro, a justiça se faz no face-a-face, no reconhecimento do outro como único e de todos os outros, cada qual soberano em sua identidade. Então, o próximo é um rei no reino do amor, onde sou súdito e servidor. Não há, nesta fraterna posição, subserviência ou indigência moral, posto que também não há tirania e violência no outro, atributos que não tenho o direito de enxergar de antemão no meu próximo, por conceder-lhe o benefício de ser alguém capaz de receber amor.
POESIA E DIREITOS HUMANOS
(MANIFESTO)
por Bruno Cattoni

A não ser por piada, ninguém pode dizer que existe um poema ou um poeta que cante e exalte as desigualdades, os preconceitos, as injustiças, as ignomínias, ou o interesse dos ricos em detrimento das necessidades dos pobres. A poesia não se presta ao ímpio e ao tirano, simplesmente porque a eles não obedece. O segredo da poesia é franqueado apenas a quem ama a natureza, os seres, e as lutas gloriosas em defesa deles. No nosso tempo, ou em qualquer outro, todos os que combatem pela vida e pelos povos oprimidos são, em última análise, poetas.

São poetas os que trabalham por um mundo melhor, mais justo e solidário. Quando não podem transformar em ações os anseios e os valores humanos, porque não o permitem os donos do poder, mesmo assim são poetas, por desejarem. A poesia é o caminho mais longo, porém mais largo, até a solidariedade. É o acesso mais eficaz para a alma expressar-se no amor, e requisitar a justiça humana, até mesmo além dos direitos do corpo e da consciência. A poesia transmuta o direito humanos em justiça elementar do homem para que ninguém se ufane de sua bondade, e não possa se arrogar direitos antes de reconhecer seus deveres com o próximo.

Então por que a poesia é mais do que um veículo de promoção dos direitos humanos? Porque ela é o destino desses direitos, para onde se orientam, por onde chegam as perplexidades para encontrarem os sonhos de libertação. No território livre da poesia se forjam as contradições entre o velho que teima em ficar e o novo que forceja em nascer. E a poesia acelera este processo de vanguarda que culmina no nascimento do amor e na justiça para todos. A poesia carrega o espanto e o estranhamento. E se embebe da clareza da manhã para iluminar a incompreensão, até que o homem não precise mais explicar seu poema, como Deus não explicou nada quando fez o homem.

Mais antiga do que o Código de Hamurabi, do século dezoito antes de Cristo, a poesia guarda desde tempos imemoriais as leis da alteridade fundadora, as leis do respeito ao outro e do amor ao próximo. Abrindo o caminho para a união dos homens, e a fim de propiciar o bem estar do povo, o rei da Babilônia, Khammu-rabi, mandou escrever num monolito de pedra um poema de 21 colunas, com 282 cláusulas que propunham a implantação da justiça na terra, a destruição do mal, e a prevenção da opressão do fraco pelo forte. Essa legislação estendeu-se pela Assíria, pela Judéia, e pela Grécia, como a primeira fonte geradora de utopias que modificam a consciência coletiva, em nome dos Direitos Humanos.

Revoguem-se as disposições em contrário e os descaminhos a que levaram os arremedos do Código de Hamurabi na longa travessia dos seres humanos até os descalabros atuais. Eximamo-nos de citar a casuística Magna Carta, declinemos de lembrar as contrafações burguesas da Revolução Francesa, ou façamos vista grossa ante os tratados de pós-guerra exclusivistas que lançaram o século vinte na Guerra Fria, na corrida armamentista, e no neoliberalismo. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante, como observou o poeta José Saramago. Nem a Declaração Universal dos Direitos do Homem, um monumento à inépcia política da ONU, pode nos guiar até o oceano etéreo onde deságua a poesia derivada de várias e remotas vertentes, como o Rig Veda, os Upanishads e o Baghavad gita. O que se faz por amor, sempre acontece além dos limites do bem e do mal, como ensinou o poeta Friedrich Nietzsche.

A poesia é o momento da vida em que não necessitamos mais de direitos humanos. Ela transforma o desejo para-si em ética para-além, e força a evolução do eu, na luta pela vida de todos, na qual somos obrigados a conhecer nossos limites e nossas potências para só então oferecermo-nos em sacrifício à espécie humana, num amor que sabe doar, ao descobrir a máxima desigualdade do outro diante de nós, mas que na sua nudez nos convoca a assumir nosso papel na relação. Esse amor, um sentimento que exalta a minha responsabilidade por todo aquele que bate à minha porta, imperativo de justiça, fruto da igualdade entre os seres existentes, tal como na obra do poeta Emmanuel Lévinas.

O poema e o amor dessa poesia é esta ética para além da fome que se satisfaz, da sede que se sacia, e dos sentidos que se aplacam. Poema e amor que me traduzem a inquietação causada pela proximidade do rosto que se encontra diante do meu. E me proclamam eu mesmo poema escrito pela impossibilidade no outro calada fundo em mim. Consistem num adeus ao contrário, convite a deus para que entre e atue sem possessão ou soberania. E por fim, tão brevemente quanto para sempre, promova e enseje o que deveriam ser os Deveres Humanos.

Nesta hora grave em que a humanidade encontra desolada a residência da poesia, no agasalho da qual deveriam fertilizar-se a solidariedade, o amor e a beleza da vida, e em seu jardim deveriam acampar em segurança todos os escravos do mundo, como as ovelhas da obra do poeta Johann Sebastian Bach...Nesta hora grave em que cada homem deveria ter um nome que não se repetisse em outro homem, para a salvaguarda inequívoca da diferença, mas com o mesmo sobrenome Dignidade...

Nesta hora grave em que as crianças, as mulheres e os velhos são massacrados pelos homens, impostores que perpetram a fraude levando na classificação do seu gênero o nome da raça mais espiritual que habita o azul...Nesta hora grave em que se faz mister abolir o desespero para manter ao menos mais um vida além da nossa... responderemos em cada gesto simples do viver, a oportuna e perturbadora indagação do poeta Friedrich Hölderlin: Para que servem os poetas em tempo de pobreza?
AS ONGS E O CONTRAPODER
por Bruno Cattoni

"Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal."

À sombra das tragédias humanas de nossos dias, a frase do artigo três da declaração universal dos direitos humanos transforma todos nós, militantes brasileiros de esquerda, em personagens quixotescos. Nossas utopias estremecem ao lermos também os outros artigos da mesma declaração. As recomendações da ONU vão ficando distantes. Os sonhos de uma nação justa e soberana parecendo bolhas de sabão.

Há escravos no Brasil do século XXI. Crianças que sofrem todo tipo de violência. Assassinatos em massa nas cidades e no campo. Um outro grande país dentro do nosso, só de terras improdutivas e, paradoxalmente, milhões de famílias agricultoras vagando pelas estradas. A geração de divisas dissipa as fronteiras nacionais e divide o país em dois, acirrando a tensão entre as duas bandas – a que tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal e a que não tem.

O relatório anual dos direitos humanos reproduz o retrato dramático desse Brasil desumano, ampliando a visão de quem está acostumado a saber das violações apenas pelas manchetes dos jornais diários. Há, no relatório, fundamentalmente, um apelo em nome da civilização, contra a barbárie. Um apelo baseado em números humanos, que opõem-se à econometria, à lógica do mercado, e à coisificação do mundo. Enquanto os organismos que representam os interesses econômicos exaltam a responsabilidade social das empresas, a marcha do capital vai sobrepondo-se à marcha do homem.

O agronegócio, por exemplo, com suas máquinas de ponta, produz progressivamente riqueza e incessantemente pobreza, aprofundando a crise social no campo. O agronegócio é como o trabalho escravo, a violência policial e a violência institucional nos hospitais, escolas, delegacias e tribunais – existem para proteger e perpetuar as elites.

A crescente agenda de temas do desenvolvimento defronta com a lentidão da justiça, os trâmites legislativos e as ações administrativas dos governos. A maneira de declarar a violência como um ato de segregação social não muda, apesar de já termos uma consciência nacional que não tolera mais o recurso da força bruta ou da intolerância. Há tortura e deliberado esquecimento das masmorras, apesar do combate retórico. Há impunidade, apesar de ações perfunctórias de recolhimento e detenção. Há ódio às mulheres, aos velhos, aos negros, às crianças, aos sem-teto e aos sem-terra, apesar de leis, estatutos e comissões parlamentares.

Sejamos otimistas. Podemos pensar que o direito vai evoluir na esteira desses movimentos cada vez maiores pela legalidade, pela legitimidade dos atos da sociedade. Haverá outra concepção que não o simples atrito entre o que pode e o que não pode nas mesas de negociação política e comercial.

É preciso ver que empreendemos um longo percurso de transformações no qual há um lugar para os múltiplos organismos de regulação da sociedade. As ONGs, as novas instituições que surgiram nas ruas da nação, e a opinião pública mobilizada nas discussões e na tomada de decisões, expõem a crise das democracias parlamentares como instâncias representativas da sociedade civil.

Para fazer com que a democracia parlamentar reforce sua legitimidade política e social talvez seja preciso institucionalizar a incorporação das ONGs e das associações comunitárias, que são expressões vigorosas da vida cívica. Trabalhar para a efetivação do debate público apenas não está impedindo as constantes violações dos diretos humanos.

Talvez fosse necessário o reajustamento das políticas nacionais à perspectiva de longo prazo, na medida em vivemos sob o signo do curto prazo, num perigoso antagonismo em relação às ameaças que se formam no futuro. O resultado é a exclusão social. Brasileiros cujos pulmões não são considerados dignos de uma moradia com saneamento básico, cujos olhos não tem a nitidez para distinguir o contorno das artes e em cujas cabeças não funcionam os mecanismos que promovem o encontro do homem com a compreensão do mundo. Brasileiros sem rosto, sem mente e sem alma, posto que sem direito a ser, a ter e a saber. Arrancam dele a vida às vezes sem matá-lo. Na maioria das vezes fazendo-o, e escondendo as razões.

Na luta pela inclusão dos movimentos sociais em todas as instâncias legais, parlamentares e administrativas, faz-se necessário um novo modelo de participação criativa propriamente humana de cada membro da sociedade, cujo funcionamento deixará de ser-lhe exterior e opaco.

Aproxima-se o momento em que, cada qual em sua área de atuação, as ONGs deverão assumir o papel de formar conselhos comunitários, levando em conta, tanto quanto possível, as demandas e os simbolismos do segmento social que representam. Neste sistema, cada sujeito intervirá na definição do próprio sistema através de seus interesses, seleções e finalidades. Realizará tarefas em condições tais que tendam á realização do homem e não à sua alienação. Os conselhos de participações deverão portar-se como um contrapoder, utilizando a expressão que o terceiro setor já desfruta e o espaço que já ocupa. Na etapa seguinte, um gestor comunitário negociará cada proposta junto aos poderes constituídos, propondo a adoção de métodos para o desenvolvimento sustentável do país, respeitando o equilíbrio entre a economia, o meio ambiente, e a qualidade de vida.
QUAL O PRÓXIMO PASSO?
por Bruno Cattoni

O que fazer quando for restaurada a ética e a decência política? Qual será o próximo passo? Reduzir impostos dos empresários para que tenham mais lucros, e da classe média para que seja uma classe domesticada e estéril? Privatizar as empresas que ainda restam nas mãos do Estado? Fomentar o crescimento a partir de uma filosofia darwinista, do vença-o-mais-forte, e expurgue-os-mais-fracos? Um crescimento baseado na tecnologia predominando sobre o homem, o adestramento sobre o aprendizado, e o mercado sobre o trabalho?

É preciso saber se depois de restaurada a ética, teremos liberdades para além das elites, resgate de cidadania, aumento da força do trabalho, distribuição de renda e de terras. E que não haja progresso enquanto houver desigualdade social. Porque se não há corrupção e prevaricação, a ética e a decência também podem faltar quando há fome e miséria, doença e degradação humana, injustiça e mercantilização da natureza e de seres humanos.

O que fazer quando for feita a reforma política, quando tivermos o voto distrital, o fundo público de campanha e a fidelidade partidária? Qual será o próximo passo? Concentrar a correlação de forças partidárias em três ou quatro partidos viciados no jogo político, numa ideologia de consenso que tenta nivelar as contradições do país em votações arranjadas com vistas à governabilidade? Que governabilidade, se no governo há um presidente com poderes ditatoriais respaldados pela constituição? Que governabilidade se as contradições do país forem esquecidas por um presidente com perfil ideológico obscurantista?

É preciso saber se depois da reforma política, terão liberdade de opinião dentro desta correlação de forças, os candidatos que representam os movimentos populares, a cultura dos direitos humanos e o sentimento de solidariedade. E se entrarão na pauta das votações as emendas à constituição que permitam a inclusão social e a redução de todo tipo de violência étnica e racial, contra pobres e desvalidos, nas cidades e no campo.

O que fazer depois que varrerem a esquerda sob o pretexto de que ela é retrógrada e com base no sofisma de que no mundo não há mais lugar para ideologias polarizadas?

Qual será o próximo passo? Talvez deixarmo-nos cooptar pela filosofia do mercado, onde a mão-de-obra de pessoas capazes é sempre bem-vinda desde que aliada ao pensamento único. Talvez possamos ajudar os disseminadores do pensamento único a seduzir os movimentos sociais para que sejam menos radicais e mais domesticados. Para que servem as reivindicações dos movimentos sociais se haverá mais fábricas para garantir mais empregos, mais oportunidades, mais percepção de renda, mais consumo, mais bem-estar e mais felicidade? E se, rezando na cartilha do mercado, houver distorções, para o bem da economia, e somente da economia, vamos corrigir o rumo em direção ao pensamento único, impermeável às contradições da luta de classes e da própria vida.

Por que não continuar lutando pelos ideais transformadores da esquerda, chamando para nós a responsabilidade de denunciar desvios e corrigir os rumos da revolução popular, em direção à maior participação dos trabalhadores na gestão da economia, e da maior participação no processo de construção do futuro também daqueles que sequer tem documentos, pão ou roupas?

O que fazer depois de investirmos pesadamente em armamentos militares, em inteligência policial e na construção de presídios para a redenção da sociedade vulnerável diante dos bandidos à solta nas ruas? Qual o próximo passo? Prender um número cada vez maior de bandidos, desbaratar as quadrilhas de malfeitores, e superar em armas o poder de fogo das facções criminosas?

Quando todos os bandidos estiverem na cadeia e houver uma falsa impressão de segurança nas ruas, será difícil perceber não só a brutalidade da repressão contra os marginalizados, como também o uso brutal da mídia para táticas de domínio. Será difícil enxergar a virulência da globalização imperante, que exclui metade da humanidade e mais da metade do Brasil. Será difícil sentir a voracidade do capital financeiro, do latifúndio esquizofrenicamente voltado para o agronegócio ou para a extração indiscriminada de madeira e de recursos minerais. Será difícil ainda nos deixar atingir pela violência com que são tratados os velhos, as mulheres, as crianças e os doentes do outro lado da sociedade, que só reaparecerá daqui a alguns anos, na forma também brutal das comoções e dos conflitos sociais.
O ROSTO, A ÉTICA, E O NOSSO DESTINO TRÁGICO
por Bruno Cattoni (com Lévinas)

Todo o pensamento ocidental está baseado no racionalismo, fonte e finalidade do eu, mesmo que se refira, neste pensar, ao outro. Mas o outro está sempre referido, nunca é o centro da estrutura do pensamento. O centro está sempre no homem, até nos mais auspiciosos humanismos. E o homem é o centro do mundo, o eu do mundo. O outro não é o homem. O outro é o Rosto que me apela. É a exterioridade do ser, para fora de toda a topologia do ser. O outro é o Infinito, e não a Totalidade fechada sobre o absoluto. O outro está aberto para que eu penetre e o substitua, o salve da violência, e o salve até mesmo da violência do meu pensamento auto-referente. O outro é ética, não ontologia, fonte e finalidade do solipsismo masturbatório.

O racionalismo pensa o pensamento, e exclui o pensar como se sonha. Uma arrogância ingênua sem limites. O sujeito não pode ir ao absoluto, porque ele é a transcendência de si antes de tentar situar-se. A sua presença já é a sua ausência. Todo pensar é poético, é chave de transformação, puro fazer sem começo, e passo-além. O Outro é o acesso para chegar a Deus, abrir-se ao Outro é abrir-se a Deus, não ao Deus absolutista, rei dos reinos, mas o Deus que me vem à idéia antes de enrascar-me na angústia de existir, que me vem à idéia ao estender a mão ao Outro que me apela, sem palavras e sem aparências, em sua presença questionadora em si mesma.

A psicanálise quer abolir de culpas o racionalismo, dar um começo e uma essência a ele, localizar o pensador num contexto de civilização e de mitos que petrificam o homem e o ser. As palavras são produtos desta mentira. A linguagem, antes de possibilitar o diálogo e a abertura ao outro, ela condiciona este diálogo e a própria presença do outro num estatuto. A linguagem produz o conceito e é produzida pelo conceito que temos de um interlocutor genérico. Ao falar com o outro, já não é com o outro que falamos. A ética não é um conjunto de valores humanos que utilizo para fazer o Bem. Ética é a essência do movimento que faço em direção ao outro que me apela, que me obriga a mexer-me.

Como posso ser livre para pensar se meu pensamento está sempre preso a mim mesmo? Como posso ser livre, tendo a liberdade como causa em si, se a morte alcança o meu interlocutor sem que eu nada possa fazer senão pensar e falar com ele? Como desligar-me de mim e partir anônimo e responsável, ao mesmo tempo, em direção ao outro que está ameaçado de morte? Como posso salvar o outro que, em seu aparecer, anuncia a minha própria miséria, meu próprio desvalor, minha própria insuficiência? Como parto sem nada para me por no lugar daquele que está em sofrimento?

É o Outro que me convoca, a mim passivo, à fé ou ao Infinito. Muitas vezes seguimos os ensinamentos sem nos despertar, só porque um profeta assim ordenou no plano da consciência. Há, de outro modo, um declanchar prévio, um traumatismo, uma ruptura nesta consciência de si que pensa Deus. É o que Descartes chamou de "a idéia que vem a nós". Quem pôs? A consciência de si? A evidência do saber (repleta de apelos), que é uma modalidade de repouso do ser em que sua identidade de ser se identifica e se confirma? Ou quem põe esta idéia em nós, para a transcendência do Infinito, é o Outro, em sua altura e em sua diferença, e que nos chama à responsabilidade sem apelo algum compreensível?

Como lutar desde a manhã, se não sentimos o Rosto do homem perante nós, mas só o nosso próprio lugar pleno de autodeterminação, a nossa idéia de Deus como proposta para nós mesmos, de seguir uma conduta limpa. Mas para quê? Para a salvação da minha alma, certamente. Não, não é suficiente para salvar o homem do seu destino trágico.