sexta-feira, 6 de março de 2009

VIAGEM AO QUINARI

Vou voar pro Quinari
Como um índio peter-pan
Quando voltar serei outro
Largarei a febre de fazer
E de perder o que vivi
Antes de o tempo me levar.
Talvez esteja fugindo
De uma sorte malsã
Mas acho que estou é indo
Atrás de uma alma irmã.
De verdade querer
De verdade estar no Quinari
De verdade ser
Um nativo apurinã
Amazonicamente pleno de si.

Não sou eu que levo
Minha comitiva pra floresta
Quem leva é o único desejo
Que foi o primeiro que me resta
Depois de incineradas as utopias.
Lá poderei limpar as feridas do rio
Com o olhar mover as células mortas
Para a turfa da margem decomposta.
Meu inconsciente lateja cheio de brisa...
Ao chegar a um remanso ribeirinho
Cavo a água com a casca da quina-quina
Lavo, como se me lavasse, a sacerdotisa
E em face da sua passividade fina
Dar, de oferenda, a vida até agora.
Vou voar pro Quinari
É lá que é minha aurora.

O tempo que ainda não foi
Já traz passado o amanhã
Sempre estive no afluente
Sabendo-me acima das cabeceiras.
Pelo ramal de Ribeirágua desliza
A proa do meu coração de madeira.

Aqui não há mais condição
Para brotar a poesia nua
Chove esperança umedecida
E a alma da terra a devolve.
Aqui não há mais solução chã
O que extrai da ignorância
É a mata, e a coisa extraída
É a inerência desta realidade.
Sacrificam as fantasias os ogãs
Enquanto o espectro de curumins
Transitam pelo verde em liberdade
Embriagados da música dos xamãs.
A vida ressurge em esplendor
Depois dos ideais oferecidos
Vou voar pro Quinari
É lá que tudo faz sentido.

Caem dos corpos as fronteiras
E vaza quieto o ânimo carnal
Em borbotões o espírito se despeja
O afeto na hora mansa de rugir.
O sonho acre exorbita da utopia
Como a areia expulsa das pegadas
O mundo é só o que acontece
Além das dores da agonia.
Aqui não moram as encruzilhadas
É lugar de se saber de tudo
Mesmo que não se pense em nada.

No Quinari a alegria durará pra sempre
Porque as árvores não são balizas justas
E se há normas são das asas que adejam
São das guelras que respiram submersas
São do vento que penteia copas e nuvens
São da fisionomia sem o ódio da televisão.
Esta é uma ilha onde os mitos se rebarbam
Mas não estão em conflito com a natureza
Nem com os diferentes costumes humanos
Sequer com a tecnologia dos computadores
Porque as capelas estão sem portas e ídolos
Como os corações que emergem como o sol
Das paisagens ímpares na luz que irradiam.
Os mitos reclamam o seu lugar nas verdades
Antes que elas desçam às profundezas rijas
E confundam-se com as rochas e com as eras.
Os templos crispam-se e acolhem de acordo
Com as marés e os fenômenos meteorológicos
Com a lua e o risco dos astros no firmamento.
Por isso não há condições para brotar a poesia
Ela venta, ela gorjeia, ela coaxa, ela relampeja
Vou voar pro Quinari
Onde quer ela esteja.

A música de Beethoven tem outro som por aqui
Ainda que interpretada pelo apito das chalanas
Pôde ela então tornar-se natureza como queria
Antes de escorrer pela evolução da Humanidade.
Tudo que foi criado está descansando no Quinari
A roda, o ferro, a lente, a indústria, a arte, a cura
Já eram miríades do rio antes de serem invenção
Vou voar pro Quinari
Em busca da minha própria canção.

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